Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Mil Vezes Boa Noite

A violência das imagens

por Bruno Carmelo

Os primeiros quinze minutos deste drama são espetaculares: a fotógrafa Rebecca (Juliette Binoche) começa a acompanhar um estranho ritual de mulheres em um país africano. Após a simulação de um funeral, elas cuidam de uma integrante em particular, lentamente prendendo dezenas de bombas ao seu corpo. Em poucos minutos, o público descobre junto da protagonista que esta é a preparação de um ato terrorista. Rebecca segue os atos até a inevitável explosão, incrivelmente bem filmada. Ferida e sangrando, ela ainda se aproxima dos corpos para tirar novas fotos.

Talvez nenhum outro momento do filme iguale o impacto deste início, mas Mil Vezes Boa Noite mantém um ótimo nível de questionamento político e de linguagem cinematográfica, ao interrogar a responsabilidade ética da fotógrafa (e da mídia em geral) diante dos atos de violência. Rebecca deveria ter avisado as pessoas ao redor com antecedência, ao invés de deixar a bomba explodir? Ou talvez as suas fotografias pós-atentado tenham maior potencial de atingir o público geral e sensibilizá-lo à causa? Onde termina a denúncia e começa a exploração da miséria? Estas são algumas das importantíssimas questões abordadas de maneira muito eficaz pelo cineasta Erik Poppe.

Apesar do início belicoso, as cenas de guerra são raras. Este é um drama familiar sobre o peso das escolhas de Rebecca em sua vida pessoal. As filhas temem por sua saúde, o marido (Nikolaj Coster-Waldau) não consegue lidar com o risco constante de perder a esposa. Juliette Binoche poderia interpretar esta mulher como uma grande mártir das causas sociais, sacrificando-se para salvar o mundo, mas ela prefere fazer uma mulher individualista, teimosa e francamente arrogante, oscilando com facilidade entre a imagem da militante engajada e da mãe/esposa negligente. É ótimo que Poppe fuja do maniqueísmo simples, tanto no contexto da guerra quanto no trabalho de Rebecca.

O aspecto romântico e familiar da história, apesar de não apresentar grande inovação, desenvolve-se de maneira fluida, amparada por boas atuações de Coster-Waldau e da atriz mirim Lauryn Canny no papel da filha mais velha. Poppe apresenta um gosto malickiano pela construção das imagens, mostrando mãos acariciando lençóis brancos no varal e personagens correndo em belas praias ao pôr do sol. São momentos de beleza idealizada e artificial, representanto o escapismo do núcleo familiar em contraste com a excitação e o perigo da guerra africana. Também merece destaque a inversão de gêneros: ao contrário da maioria das produções de Hollywood, neste caso é o homem que fica em casa, cuidando o lar e temendo pela vida do cônjuge, enquanto a mulher embarca na aventura e enfrenta inimigos.

Uma belíssima cena de Mil Vezes Boa Noite sintetiza muito bem a abordagem do filme: em um momento de discussão calorosa entre mãe e filha, esta pega a máquina fotográfica e dispara dezenas de fotos a poucos centímetros do rosto de Rebecca, enquanto a mãe se desespera e chora. O duplo sentido do verbo “disparar” (para a fotografia e para a arma) ganha uma metáfora perfeita, ilustrando o uso da imagem como agressão e invasão. “Eu quero que as pessoas engasguem com o café da manhã quando abrirem o jornal”, diz Rebecca sobre a publicação de suas fotos de cadáveres. Esta é uma história de agressões, tanto privadas quanto públicas, tanto dos indivíduos quanto dos governos. Mas a violência é vista como inerente ao sistema, inevitável nas guerras e nas famílias.