Justiça à americana
por Bruno CarmeloA cinebiografia A Dama Dourada é baseada em um caso extraordinário, retratando a trajetória de uma pessoa comum que vence uma estrutura muito mais poderosa do que ela. No caso, a austríaca Maria Altmann (Helen Mirren) decide atacar o governo de seu país na justiça, para reaver o quadro “Woman in Gold”, de Gustav Klimt, que foi roubado de sua casa durante a invasão dos nazistas. Quem ajuda esta mulher é um advogado igualmente comum e despreparado para uma tarefa tão grande: o jovem Randol Schoenberg (Ryan Reynolds).
Partindo dessa premissa, o roteiro decide retratar simultaneamente a dura vida de Maria no passado e sua luta otimista no presente. A montagem paralela alterna cenas dos dias atuais, cômicas e ensolaradas, com o pesadelo dos flashbacks, em tom dessaturado, profundamente sentimental. O diretor Simon Curtis parece dizer que a vida dos judeus emigrantes melhorou, que os horrores ficaram para trás, e que a maioria dos traumas são individuais, não coletivos – afinal, a luta da protagonista é construída como desejo isolado de reparação pessoal, ao invés da luta simbólica de uma nação.
Para tornar a história mais palatável ao grande público, Curtis decide se focar no trauma da protagonista, minimizando os inúmeros trâmites burocráticos do caso real. A intenção é louvável: ao lado das lágrimas e horrores das cenas no passado, os momentos contemporâneos oferecem uma quantidade generosa de humor. A dupla principal de atores transita entre drama e comédia com naturalidade: Helen Mirren tenta fazer de Maria Altmann uma mulher impulsiva e briguenta, já Ryan Reynolds compõe um advogado atrapalhado e ingênuo.
Infelizmente, o roteiro não facilita o trabalho do elenco. As motivações dos personagens são mal trabalhadas: por que a protagonista decidiu reaver os seus direitos de repente, e por que muda de ideia tantas vezes sobre o desejo de processar o governo austríaco? O que teria motivado Randol a investir todo o seu tempo e dinheiro numa causa quase impossível? Como explicar o súbito apego do advogado às suas raízes? A construção dos personagens coadjuvantes é ainda pior: o talentoso Daniel Brühl é subaproveitado no papel de um homem que aparece ou some sem explicações ou motivações plausíveis, enquanto Katie Holmes torna-se risível ao privar seu bebê recém-nascido de recursos para que o marido siga adiante com o processo.
Como filme de tribunal, A Dama Dourada é ainda mais frágil. O humor pueril prejudica as cenas passadas na Suprema Corte: é difícil crer em Maria Altmann insistindo que Randol aceite balas no meio da defesa, ou em todo o tribunal rindo de uma piada sobre minhocas em um momento seríssimo. Os experientes advogados da oposição nunca representam um perigo real, nem funcionam como elemento de tensão. O roteiro trabalha a noção utópica de justiça, estimando que a verdade sempre prevalecerá sobre a mentira, mais cedo ou mais tarde, de modo natural.
“Isso aqui não é a Áustria, são os Estados Unidos!”, diz um personagem para sublinhar as dificuldades do julgamento em solo americano. Enquanto o filme insiste no funcionamento implacável da justiça ianque, uma bandeira norte-americana balança ao vento no fundo da imagem. A biografia assume a vocação patriótica de uma História feita por indivíduos excepcionais movidos por vontades heroicas, ao invés de uma sequência de embates sistemáticos entre sociedades e ideias.
Filme visto no 65º festival de Berlim, em fevereiro de 2015.