Do natural ao sobrenatural
por Bruno CarmeloEste filme de terror parte da improvável fusão de dois subgêneros: por um lado, a investigação médico-criminal, por outro, as tramas de garotas possuídas por forças do mal. O elemento capaz de unir os dois aspectos é uma mulher desconhecida (Olwen Catherine Kelly), batizada de “Jane Doe” – espécie de “Zé Ninguém” americano – pelos técnicos legistas encarregados de descobrir as circunstâncias de seu assassinato. Com uma protagonista morta desde a primeira cena, o roteiro desperta curiosidade pela maneira como pretende desenvolver a gradação do terror.
A apresentação do conflito é a mais simples possível. Existem apenas dois personagens (vivos, pelo menos) durante a maior parte do tempo: o pai Tommy (Brian Cox) e o filho Austin (Emile Hirsch), legistas que trabalham no porão da própria casa. Para terem alguma complexidade psicológica, o roteiro lhes confere um trauma recente: a perda da mãe e esposa. 90% da história se passa neste porão, com a dupla masculina confrontada ao cadáver misterioso. Na primeira parte da narrativa, ambos procedem à investigação, gravando a autópsia, fazendo incisões e retirando órgãos.
A metade inicial é a melhor de A Autópsia, por testar os limites do ceticismo dos personagens e também do espectador. Vários fatores apresentam difícil explicação: Como um corpo tão danificado por dentro não teria nenhuma marca externa? De onde viriam as cicatrizes em seus órgãos? Por que ela ainda sangra, se a morte ocorreu há muitas horas? Os experientes homens de ciência recorrem a teorias raras para justificar cientificamente o caso atípico. Os momentos em que o roteiro caminha entre o natural e o sobrenatural constituem os pontos fortes do filme.
Infelizmente, o diretor André Ovredal transforma seu suspense num terror padrão, provavelmente por imposição dos produtores. A segunda metade da trama abandona o jogo das hipóteses racionais e parte para os estímulos comuns do horror de possessões. Entram em cena todos os clichês do gênero: figuras assustadoras no fundo do corredor, sombras de pés passando por debaixo da porta, sustos pelo buraco da fechadura, luzes se apagando quando o terror se acentua, símbolos de rituais satânicos, tempestades impedindo a abertura das portas.
Os elementos mais instigantes do início tampouco servem para aprofundar o interesse no projeto: o espaço único, que poderia ser muito bem explorado pela sensação de claustrofobia ou pelos diferentes enquadramentos, é limitado através da filmagem clássica. Usando o formato scope, Ovredal retrata um dos personagens principais num terço da imagem, e deixa o cenário do necrotério ocupar a outra parte, ao fundo do quadro. A contradição de ter a fonte do mal presente em cena o tempo inteiro não desperta a tensão esperada: o roteiro não consegue associar os fenômenos ao cadáver no meio da sala, e a própria transformação dos legistas em dois homens apavorados soa abrupta demais. O trauma da perda da mãe e esposa também não serve para tornar os personagens mais complexos nos instantes de horror.
“Quem é Jane Doe?”, pergunta o material publicitário. A Autópsia não fornece respostas satisfatórias: pouco importa, afinal, a identidade do cadáver, assim como importam muito pouco as personalidades dos legistas. O projeto é movido por uma dinâmica limitada: um elemento ameaça dois outros, impedidos de fugir. Um ataque, duas vítimas em potencial. Como investigação médico-criminal, o resultado decepciona por não apresentar explicação plausível aos elementos descobertos na autópsia. Como terror sobre exorcismos, desaponta ao desprezar as causas e consequências da possessão, gastando tempo excessivo na pirotecnia sobrenatural.