Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Adoráveis Mulheres

A moral da mulher

por Sarah Lyra

Esta crítica pode ter spoilers do filme e do livro Adoráveis Mulheres.

“Moral não vende, hoje em dia”, diz um personagem em certo momento de Adoráveis Mulheres, enquanto provoca uma discussão sobre as exigências e necessidades do mercado editorial nos anos 1860. É curioso pensar como esta frase tenta se manter atual ainda nos dias de hoje, e como a história da mulher na sociedade está atrelada ao moralismo de diferentes épocas. Até que ponto a mulher pode ousar sem ofender os "bons costumes", ou ser inteligente sem se tornar ameaça? Mais do que sobre os anseios de quatro irmãs, esta nova adaptação para o cinema costura a história de três grandes mulheres com muito em comum: a protagonista Jo March (Saoirse Ronan), a autora da obra original Louisa May Alcott e a diretora Greta Gerwig.

Para transitar entre esses universos, épocas e personalidades, Gerwig explora o que talvez seja o aspecto mais marcante de sua produção: a montagem. A fluidez com que se movimenta entre diferentes linhas temporais, emprega elipses narrativas e ressignifica os espaços ocupados pela família March impressionam pelo nível de consciência e controle sobre o que se espera alcançar. O exemplo mais marcante nesse sentido é a cena da morte de Beth (Eliza Scanlen). Em um primeiro momento, a câmera acompanha Jo acordando, dando fortes passadas sobre o assoalho e chegando à cozinha para descobrir que sua irmã está recuperada. Logo em seguida, Gerwig apresenta a personagem em uma situação similar, a partir de leves alterações nos planos empregados, mas com um tom diferenciado que anuncia o que está por vir. Não apenas a fotografia se torna mais azulada e sombria, mas a cautela de Jo ao descer as escadas revela o medo da personagem de confrontar o que estava por vir.

O design de produção, inclusive, é um grande aliado da montagem. Sem a necessidade de incluir letreiros ou qualquer outro recurso didático, Adoráveis Mulheres se apoia no figurino, na fotografia e na direção de arte para demarcar os diversos períodos da vida de seus personagens, sem precisar diminuir o ritmo acelerado entre as cenas para melhor compreensão do espectador. Note como, embora todo o visual do filme seja marcado por sombras, o preto se torna muito mais azulado e sem vida no presente, enquanto no passado os raios de luz amarelados mantêm a casa da família March quente e acolhedora. As vestimentas, sempre com um detalhe em vermelho em um primeiro momento, dão espaço para tons dessaturados em outro, ilustrando o estado de espírito que assola a família.

No que diz respeito ao tempo dedicado aos personagens, Gerwig se arrisca ao tomar uma decisão que poderia ter causado estranheza. Das quatro irmãs, Beth certamente tem o menor tempo de tela, mas é interessante observar como ela permeia toda a trama mesmo em sua ausência. Afinal, é Beth quem mantém a família unida, promove a paz entre as irmãs e tem o status de “a melhor das March” frequentemente propagado pelos demais membros da família. Nesse sentido, embora a função da personagem esteja clara, teria sido válido explorar as nuances de uma jovem que é tratada como uma santa, incapaz de fazer o mal ou cometer erros. Até mesmo sua relação com o Sr. Laurence (Chris Cooper) vem no sentido de reforçar essa imagem. E o mesmo acontece com a "mãezinha" de Laura Dern, que está sempre de prontidão para propagar uma mensagem de paz e união, mas sem de fato revelar a fundo suas tristezas e inquietações.

O roteiro de Gerwig também desperdiça a oportunidade de explorar mais a fundo o triângulo amoroso entre Jo, Laurie (Timothée Chalamet) e Amy (Florence Pugh). Uma das cenas mais tocantes nesse arco é aquela em que Amy diz que jamais poderia se casar com Laurie, porque sempre se sentiria a segunda opção do rapaz. O diálogo é tão potente e convincente, que se torna decepcionante ver como a questão é rapidamente resolvida momentos depois, mesmo diante do belo trabalho de atuação do trio.

“A mulher precisa se casar ou morrer”, diz o editor, em um de seus momentos sobre como as personagens femininas devem ser retratadas — e note como, naquele cenário, as duas opções são niveladas a ponto de não parecerem tão diferentes uma da outra. Diante do ultimato, Gerwig propõe uma saída inteligente que abre algumas possibilidades de interpretação. Primeiro, porque se recusa a restringir o papel da mulher a uma dicotomia. Segundo, porque, de certa forma, mantém o final da obra original, mas decide ressignificá-lo em prol da protagonista e do que ela representa. E, por fim, porque homenageia Louisa May Alcott ao colocar Jo na mesma posição em que a autora original esteve ao decidir lançar o livro Adoráveis Mulheres: o de escolher entre o final mais coeso e coerente para a história, ou ceder às pressões do mercado para tornar sua obra comercial e lucrativa. Ao mudar o desfecho, mas ao mesmo tempo mantê-lo, Gerwig desafia as percepções limitadas sobre o papel da mulher (e do mercado editorial) e se coloca como um agente transformador da sociedade patriarcal.

Hoje em dia, a moral vende.

Filme visto no 21º Festival do Rio, em dezembro de 2019.