Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
A Odisseia de Alice

Desejos femininos

por Bruno Carmelo

O cinema e a literatura estão acostumados a retratar o mar como um símbolo de liberdade, mas alguns cineastas preferem transmitir, através das águas, a solidão e a claustrofobia a céu aberto. Este é o caso de A Odisseia de Alice, que mostra a rotina da tripulação de um cargueiro, acostumada a passar várias semanas sem o contato com outras pessoas. Alice, única mulher da equipe, sente-se ainda mais isolada. Ela possui um namorado em terra, e logo redescobre a bordo do navio Fidelio um antigo amor, o capitão Gaël.

A premissa do triângulo amoroso poderia render um romance padrão, mas a diretora Lucie Borleteau vai além do amor romântico. Ela prefere investigar as configurações do desejo sexual feminino, contrastando a clausura dos espaços com a liberdade dos corpos. Alice é uma mulher bem resolvida com sua sexualidade e seus afetos: ela se relaciona com vários homens, faz sexo com quem bem entende, sem se esconder nem apresentar qualquer tipo de vergonha. Quando os homens fazem comentários sobre as prostitutas encontradas nos portos por onde passam, a protagonista também verbaliza sua opinião a respeito dos pênis vistos por cinco continentes. Ao mesmo tempo, ela ama sinceramente o namorado à sua espera. Contrariando os dogmas cristãos, A Odisseia de Alice acredita que o amor é compatível com uma sexualidade libertária e plural.

A abordagem madura do sexo é acompanhada por um olhar naturalista das relações humanas dentro do Fidelio. A narrativa dedica um tempo considerável a mostrar a rotina dos marinheiros, cada um com sua nacionalidade, sua língua, sua religião, seus hábitos. Aos poucos, constroem-se satisfatoriamente as personalidades distintas de uma boa dúzia de personagens, algo raro num roteiro tão conciso. A eficiência das descrições é potencializada por diálogos primorosos, ora perfeitamente naturais, ora literários e reflexivos, quando Alice lê o diário de um marinheiro falecido, ou quando escreve para o namorado distante. A nostalgia é explorada sem recursos melodramáticos: o silêncio se traduz nas imagens naturalistas do mar profundo ou dos grandes maquinários dentro do cargueiro.

Borleteau impressiona igualmente pela abordagem segura do espaço e do tempo. O navio é cuidadosamente explorado pelas errâncias dos personagens, enquanto a montagem microscópica se encarrega da passagem dos dias, das semanas, aumentando o sentimento de aprisionamento. Compreende-se a necessidade de a tripulação interagir, inclusive sexualmente, uns com os outros: o desejo é retratado como uma atividade perfeitamente natural e necessária. O corpo dos atores, neste contexto, é filmado de maneira frontal, com luz comum, em ângulos simples. Ariane Labed está excelente tanto nos olhares furtivos quanto nos encontros com os amantes. Já alguns dos homens de sua vida, interpretados por Melvil Poupaud, Anders Danielsen Lie e Bogdan Zamfir, mostram-se mais inseguros do que ela.

Hoje em dia, o termo feminismo é visto de modo pejorativo por muitas pessoas que desconhecem o real alcance deste conceito. Mas A Odisseia de Alice é uma das raras produções que poderiam ser descritas como tal. Não apenas por ter uma diretora mulher, nem por se focar numa história feminina, e sim por despir sua protagonista das opressoras convenções sociais e deixá-la, de maneira otimista e sem julgamentos, desfrutar do seu corpo e do mundo ao redor como bem entender. A própria Alice explica: o amor, para ela, significa “ter tudo”. Mesmo presa dentro de um navio, ela está aberta ao mundo.