Quem tem medo de Hebe Camargo?
por Bruno CarmeloEm meio à onda crescente de cinebiografias de personalidades populares da cultura brasileira, este filme parte com algumas vantagens sobre as demais. A primeira é a decisão sábia de não fazer uma leitura linear da trajetória de Hebe, desde a infância até a consagração, o que sempre leva a problemas evidentes de montagem, maquiagem e uso de elipses. Desde o início de A Estrela do Brasil, Hebe (Andréa Beltrão) já se encontra no auge da carreira, superando a audiência dos programas da Rede Globo e incomodando a censura. A segunda boa escolha é a de transmitir a vida privada através da vida pública: compreendemos bem os amores e rancores da apresentadora enquanto está nos palcos, o que permite aprofundar a psicologia da personagem junto de sua persona diante das câmeras.
Além disso, é com alívio que se encontra uma composição certeira de Beltrão para a protagonista. Seria fácil cair na caricatura ao retratar a figura de tantos bordões e gestos consagrados, mas a atriz nem repete os tiques em excesso, nem força demais o sotaque interiorano. Percebe-se uma cuidadosa evocação de Hebe enquanto figura popular, capaz de dialogar com diferentes classes sociais ao ostentar um privilégio social kitsch, repleto de brilhos e figurinos extravagantes. Em especial, reforça-se o aspecto provocador da protagonista: o diretor Maurício Farias e a roteirista Carolina Kotscho fazem questão de representar Hebe como uma figura destemida, que enfrentou a censura enquanto corria risco de prisão, e ousava entrevistar travestis quando o conservadorismo não permitia dar voz a indivíduos LGBTQI.
Não por acaso, parte considerável da trama é focada em homens desesperados (sejam eles produtores de televisão, decoradores de set ou membros do governo) se interrogando sobre o modo de domar a diva caprichosa que questiona a corrupção no Brasil enquanto exige que o programa seja “do seu jeitinho”. Apesar de todos os méritos, o filme ainda se ressente da idealização que costuma afetar as cinebiografias: reforça-se as qualidades enquanto se atenua os defeitos. Assim, a mulher forte e autônoma, que não se deixa domar pelo marido ciumento (Marco Ricca) tem sua controversa participação política na campanha de Paulo Maluf praticamente ignorada na trama. O apoio a Maluf e Celso Pitta, essencial à eleição de ambos, foi responsável pelo desprestígio de Hebe com certa parcelo dos telespectadores, mas o filme prefere acreditar que seus conflitos se resumiam à autonomia feminina e à liberdade de expressão.
Condescendências à parte, Hebe - A Estrela do Brasil possui um ritmo fluido e bem dosado, combinando fortes momentos dramáticos (o discurso às câmeras, as crises com o marido) com instantes hilários provenientes da espontaneidade da apresentadora. A sequência em que Hebe escolhe seu novo cenário no SBT, por exemplo, e o encontro com outras figuras marcantes do imaginário popular como Roberto Carlos (Felipe Rocha), Dercy Gonçalves (Stella Miranda) e Chacrinha (Otávio Augusto) rendem ótimos momentos. Em meio às personificações, apenas Daniel Boaventura parece deslocado como Sílvio Santos, por possuir um porte físico e uma voz totalmente diferentes do apresentador. Mesmo assim, a equipe de figurino e direção de arte se diverte com o festival de casacos brilhantes, brincos imensos e penteados luxuosos da personagem.
A direção de fotografia é muito bem pensada para extrair o melhor de tantos elementos em cena, e Maurício Farias demonstra um controle invejável do tempo e dos espaços. O cineasta constrói duas cenas belíssimas no closet da casa de Hebe, além de alguns instantes memoráveis como a dança com Lélio, captada por um plano aéreo em câmera lenta, e a primeira chegada da protagonista ao lar, num longo plano-sequência em que o silêncio, o barulho dos brincos e do salto sobre o chão dizem mais sobre a solidão e o luxo do que qualquer diálogo. As cenas de bastidores, em especial, com Hebe controlando o público e os produtores ao mesmo tempo, ao vivo, são particularmente bem montadas. A produção conquista a difícil proeza de fazer tantos elementos de arte e luz soarem orgânicos dentro daquele ambiente, ao invés de serem ridicularizados pelo olhar da direção.
Mesmo assim, alguns elementos prejudicam o resultado final, como a exposição simplificada do HIV (“Quem se importa com a gente?”, lamenta o maquiador doente interpretado por Ivo Müller), o product placement nada sutil de uma marca de jóias e o som que reforça demais os diálogos em relação aos ruídos (em especial nas conversas com o personagem de Danilo Grangheia). Estes são detalhes, no entanto, diante da competente representação da vida de Hebe Camargo. À produção Globo Filmes, que teve a coragem de retratar os méritos de Bandeirantes e SBT, faltou apenas demonstrar a mesma ousadia ao olhar para os aspectos mais questionáveis da vida da protagonista. A importante, porém curta cena dos brincos roubados não basta: seria necessário investigar o poder que os “formadores de opinião” tiveram nos rumos políticos e sociais do país, especialmente em se tratando de uma figura tão popular quanto Hebe Camargo.
Ainda não é desta vez que as cinebiografias brasileiras conseguem reproduzir de modo tão explícito os altos e baixos de um personagem quanto Bingo – O Rei das Manhãs. Mas já se supera, em muito, a qualidade da média de produções do gênero, em busca de um produto capaz de agradar tanto aos críticos quanto ao público médio. Espera-se que este filme seja capaz de realizar esta importante ponte entre os dois polos, divertindo e provocando ao mesmo tempo.