Espírito de uma época - Parte II
por Francisco RussoSe você mora no Rio de Janeiro, ou já passou por ele, é bem provável que tenha ouvido falar do Circo Voador. Pólo de efervescência cultural criado em plena ditadura, no início dos anos 1980, ele floresceu muito graças à proposta ideológica de liberdade e criatividade, tão rara durante o governo militar. Logo em seu primeiro verão, ainda no Arpoador, o Circo tornou-se celeiro do ascendente rock brasileiro, com bandas como Blitz, Barão Vermelho e Paralamas do Sucesso fazendo sucessivos shows. Circo Voador - A Nave tem como tarefa abordar esta trajetória, mas não atinge este objetivo por completo devido à uma briga de bastidores que fez com que esta mesma história fosse dividida em dois filmes.
Lançado em 2014, o também documentário A Farra do Circo acompanha a trajetória do Circo Voador, mas com um olhar externo. Como não possuía os direitos sobre a maior parte dos shows realizados no local, os diretores Roberto Berliner e Pedro Bronz optaram por construir um filme apenas com imagens de época, de forma a transmitir a experiência daquele momento. Deu certo, por mais que a repetição de imagens seja por vezes cansativa. Dirigido por Tainá Menezes, Circo Voador – A Nave não passa por este problema. Avalizado por Maria Juçá, coordenadora do local, o novo documentário é repleto de cenas de shows e bastidores – algumas impressionantes.
Graças ao vasto arquivo histórico disponível, Circo Voador – A Nave possui uma vibração que falta a A Farra do Circo. Por mais que também explore bastante os tradicionais depoimentos de pessoas que participaram da criação e do desenvolvimento do local, é no acervo que está seu grande trunfo. Seja na apresentação empolgada de Tim Maia ou no dueto formado por Cazuza e Caetano Veloso; na emocionante despedida dos palcos de Rita Lee ou no explosivo show do Planet Hemp, repleto de pessoas subindo e descendo do palco, a todo instante. São instantes que, além de dizerem muito sobre a música popular brasileira e o estilo de vida dos envolvidos, refletem também a liberdade e diversidade ali existentes. Refletem, na essência, o que é o Circo Voador.
Se A Nave não aborda a experiência de levar o Circo Voador a outras cidades, especialmente a ida a Guadalajara durante a Copa do Mundo de 1986, aqui é apresentado em detalhes todo o drama decorrente do fechamento do local, em 1996, quando o então prefeito César Maia e seu sucessor Luiz Paulo Conde foram expulsos pelos fãs da banda Ratos do Porão. Neste sentido, pode-se dizer que A Nave e A Farra do Circo sejam documentários complementares, já que cada um aborda elementos ausentes (ou pouco desenvolvidos) no outro. Por este motivo, ainda está para ser feito o documentário definitivo sobre o Circo Voador – e, enquanto isto não acontece, é recomendável assistir ambos para se conhecer bem o tema proposto.
Pelo lado de A Nave, ficam o lado mambembe dos envolvidos em fazer tudo acontecer, a mescla de gerações com o passar dos anos e histórias divertidíssimas, como a de Marcelo D2 envolvendo Tim Maia. Trata-se de um filme de estética suja, devido à baixa qualidade de boa parte das imagens exibidas, e que (também) por isso transmite uma vibração contagiante. Para quem viveu o Circo Voador, gosta de música brasileira ou simplesmente quer conhecer mais um pedaço da história cultural do Rio de Janeiro – e, por que não?, do próprio Brasil.