Críticas AdoroCinema
4,5
Ótimo
Pelo Malo

Amores brutos

por Bruno Carmelo

O título deste drama desperta curiosidade: “Pelo Malo”, em espanhol, significa “cabelo ruim”. O nome não foi traduzido pelos distribuidores brasileiros, talvez para não remeter a qualquer ideia de preconceito. Mas o preconceito é justamente o tema desta bela obra venezuelana, não apenas contra o dito cabelo ruim, mas também contra a homossexualidade, a pobreza, as mulheres etc. Pelo Malo é, de certa forma, um filme sobre a dominação e a injustiça em sociedades pobres.

Por ser uma obra abertamente social, seu roteiro impecável consegue embutir, com grande naturalidade, as principais instituições que determinam os valores morais nas sociedades modernas: a família, a escola, o governo, a igreja. A diretora Mariana Rondón faz com que seus dois protagonistas transitem por todos esses núcleos em seu dia a dia: Marta (Samantha Castillo) é a mãe solteira de dois garotos, que mora em uma comunidade de classe baixa, e Júnior (Samuel Lange Zambrano) é o filho mais velho. Diferente dos colegas, o menino não gosta de futebol ou de armas, e prefere pentear o próprio cabelo, passear com as amigas de classe. A mãe não sabe como reagir à suspeita da homossexualidade do garoto, enquanto luta para reconquistar o emprego que perdeu, flertando com o antigo patrão.

A cineasta poderia fazer um retrato maniqueísta e fetichista da miséria, como já vimos dezenas de vezes nos cinemas, mas a história evolui de maneira verossímil e respeitosa. Rondón observa os protagonistas como parte de um grande sistema que se retroalimenta, e do qual é difícil sair. A mãe é agressiva e rejeita o garoto por ser gay, mas ao mesmo tempo vai ao médico duas vezes para perguntar se o menino não teria alguma doença que o leva a ser “diferente”. Existe amor nesta relação, mas é um amor bruto, deslocado, imperfeito. Quando Marta ameaça cortar os cabelos do filho, de que ele tanto gosta, ela não o faz por ódio, mas por acreditar, em sua ignorância, que é possível “corrigir” a orientação sexual do menino.

Aliás, na época em que se debate na mídia o beijo gay, as pesquisas sobre “mulheres que merecem ser estupradas”, a “ideologia de gênero” e outros termos complexos, Pelo Malo surge como ótimo material de reflexão. A história consegue provocar de maneira inteligente (ou seja, sem buscar a simples polêmica) algumas ideias convencionais sobre “ser homem”, “ser mãe”, “ser mulher” etc. Júnior afirma a sua virilidade confrontando a mãe, embora o desejo de ter cabelos lisos seja visto como algo feminino (e, portanto, perigoso). Já Marta sai com vários homens e não hesita a fazer sexo com o patrão para voltar ao emprego (contrariando o ideal de dona de casa recatada). O garoto sonha em ter uma profissão contrária à imagem de masculinidade (ele deseja cantar e dançar), já a profissão de Marta vai de encontro com a imagem de delicadeza feminina (ela é uma vigia bruta e agressiva).

Rondón consegue dividir o ponto de vista desta história entre a mãe e o garoto. Enxergamos o mundo pelos olhos dos dois, e essa opção ética da cineasta é fundamental para que ninguém se transforme em monstro ou vítima. Compreendemos os esforços tolos e tortos de ambos, porque eles são incapazes de compreender o mundo um do outro. O visual do filme, repleto de imagens subjetivas, aproxima o público desta família em crise, mostrando os vizinhos, os amigos do bairro, a vida nas favelas como se o espectador fizesse parte do contexto. Raros filmes conseguem explorar o espaço de maneira tão eficaz – algo particularmente importante em uma obra social. Já os dois atores contribuem à noção de naturalidade da fotografia e dos enquadramentos, com atuações impecáveis, tanto de Castillo, que possui uma personagem dificílima em mãos, quanto do jovem Zambrano, um verdadeiro achado da direção.

Pelo Malo acaba sendo um filme carinhoso sobre pessoas brutas. É uma obra fascinada pelos indivíduos e pelas escolhas que fazem, pelo jeito como vivem, como trabalham, como amam. Neste sentido, a conclusão, tão cruel quanto inevitável, serve para cutucar os preconceitos do público. Depois de permitir que o espectador conheça Marta e Júnior e torça por eles, fica difícil condená-los pela dura decisão que tomam. Os dois são frutos de uma estrutura maior, injusta e opressiva, e o filme assume seu viés político ao destrinchar, de maneira astuciosa, as derivas da tradição e dos bons costumes.