Uma história de doping
por Bruno CarmeloUma suposição errada sobre este filme seria de que se trata de uma biografia sobre o ciclista Lance Armstrong. O projeto não é sobre a sua trajetória, sua paixão pelo esporte, seu passado familiar, suas relações amorosas, seu papel como ícone cultural e esportivo. O escopo do diretor Stephen Frears é muito específico: esta é uma história sobre a prática constante de doping pelo vencedor de sete edições do Tour de France. O roteiro não reflete sobre as consequências gerais da aplicação ilegal de estimulantes na esfera esportiva. O foco é unicamente o doping de Armstrong.
O espectador pode ficar surpreso com a velocidade das informações despejadas no início da trama. O ciclista (interpretado por Ben Foster) inicia uma carreira fracassada, descobre as drogas, passa a tomá-las, torna-se campeão inesperadamente, ganha a atenção da mídia, sofre com um câncer, é operado, volta a treinar e cria uma associação de caridade – tudo isso nos primeiros quinze minutos. Os fatos são apresentados com tamanha pressa que temos a impressão de ver uma reportagem, um compacto de televisão. Conhece-se pouco sobre o que levaria Armstrong a experimentar a testosterona e outras substâncias proibidas. O interesse está adiante, nos fatos, na prática do doping em si, e não na psicologia do protagonista.
Portanto, espere menos cenas de ciclismo do que aplicações de seringas no corpo, transfusões de sangue e compra de novos remédios. Desde a segunda cena do filme, ele se dopa, e até a imagem final, Armstrong é relacionado à trapaça no mundo esportivo. O discurso do projeto é claro: ele jamais teria vencido uma única corrida sem o uso das substâncias, e só pôde continuar a fazê-lo porque contou com o apoio de uma grande equipe e a conivência das instituições antidoping, que não desejavam atacar sua maior estrela. Além disso, o esportista possuía grande poder de oratória e capacidade de driblar acusações da imprensa.
É curioso que o protagonista se torne um vilão. O roteirista e o ator principal se encarregam de criar um personagem cínico, manipulador, capaz de mentir sobre tudo, até as coisas mais banais: ele engana um jornalista durante uma partida de pebolim, mente sobre a sua experiência com o câncer numa palestra, mente enquanto grava um comercial de televisão, e saúda crianças enfermas em hospitais apenas para melhorar a sua imagem. Depois, treina diante do espelho a frase “Eu nunca usei drogas para melhorar a minha performance” e repete o texto para a imprensa. O ciclista é retratado como uma figura sem escrúpulos, disposta a tudo para vencer as corridas.
Diante de um personagem tão unilateral e desagradável, são os coadjuvantes que se destacam. É na galeria secundária que se encontra complexidade psicológica e ambiguidades quanto às práticas esportivas ilegais. Chris O’Dowd surpreende como um jornalista investigativo que ousa enfrentar o sistema, mas duvida do alcance de suas descobertas contra Armstrong, e Jesse Plemons está excelente no papel de um ciclista da equipe de Armstrong, que ousa assumir o consumo de drogas.
O doping, portanto, é visto como uma questão moral, mas não ética. Nunca conhecemos a pressão midiática e esportiva que leva competidores de alto nível a burlar as regras, apenas sabemos que a prática é moralmente condenável. O Programa constitui uma biografia acusatória, apontando mocinhos e bandidos. É o tipo de cinema que diz ao espectador o que pensar, indicando de quem gostar e quem detestar, ao invés de convidá-lo a pensar por si próprio. Infelizmente – ou felizmente, dependendo do ponto de vista – a realidade do doping no mundo esportivo é muito mais complexa do que esta representação maniqueísta.
Filme lançado diretamente em VoD, e visto por cortesia da Sofá Digital.