Contra todos
por Bruno CarmeloSe você já assistiu a Cronicamente Inviável, Quanto Vale ou é Por Quilo? e outros filmes dirigidos por Sérgio Bianchi, talvez Jogo das Decapitações não traga novidades. Caso esta seja a primeira vez, saiba que o filme contém todos os ingredientes da visão de mundo e de cinema deste cineasta: um olhar ferozmente negativo em relação à sociedade e à moral. Bianchi é um apaixonado pela política, mas dirige o seu interesse às falhas e incoerências do sistema.
No caso, o tema de Jogo das Decapitações é a herança da ditadura no Brasil, décadas após o fim do regime militar. Os personagens em questão são todos arrogantes e desagradáveis: Leandro (Fernando Alves Pinto) é um estudante de 30 anos de idade, que não tem ambições na vida, Rafael (Silvio Guindane) é seu colega raivoso e comodista, violento contra qualquer forma de manifestação social, porque tudo “vai ficar como está”, Marília (Clarisse Abujamra) foi torturada durante a ditadura, e hoje organiza coquetéis chiques sobre o tema, quando se encenam momentos de tortura diante dos aplausos da plateia, Vera (Maria Manoella) tem uma veia contestadora, mas por preguiça não a leva adiante, preferindo investir em qualquer trabalho que lhe dê dinheiro.
As críticas de Bianchi poderiam conduzir a uma discussão pertinente: ele sugere que certos presos políticos vivem explorando as suas condições de vítimas, e que algumas pessoas bem-intencionadas não passam de pedagogos hipócritas, que valorizam os torturados de antigamente, todos de classe média, mas ignoram os pobres de hoje. Este discurso merece ser apresentado, mas o raciocínio do filme nunca é dialético. Bianchi não contrapõe argumentos para chegar a uma síntese, preferindo desconstrui-los com o vigor de um maníaco da serra elétrica. O filme critica a esquerda caviar, a esquerda social-democrata, a esquerda marxista, o centro, a direita reacionária, o anarquismo. Ele ataca os jovens que defendem linchamentos na rua, os policiais que lincham, mas também aqueles que não fazem nada diante do linchamento. Jogo das Decapitações parece ser contra tudo, radicalmente oposto a qualquer possibilidade de organização social.
Quanto ao próprio título, “O jogo das decapitações” é um filme-dentro-de-filme, obra de um artista da contracultura que foi obrigado a perceber que não tinha mais lugar nesse mundo após os anos 1980, e desapareceu. Esta obra fictícia é descrita como “uma alegoria reacionária”, e embora seja tentador aplicar o mesmo rótulo à obra de Bianchi, esta seria uma escapatória muito fácil. Talvez este filme seja mais niilista do que reacionário. Mas este não é um niilismo otimista, em estilo nietzschiano, e sim um niilismo feito de vísceras. A obra é repleta de atos gratuitos de violência, de corpos e cabeças cortadas, de sangue jorrando por todos os membros, de pesadelos e abusos.
A argumentação acaba sendo voluntariamente grotesca e caricatural. O discurso que faz apelo às emoções tem tendência a buscar a persuasão e reduzir a discussão a símbolos, e este caso não é diferente. É difícil falar do nível das atuações, ou da mise en scène de Bianchi: tudo é soterrado pelo discurso. Os personagens nunca parecem humanos, eles são apenas estereótipos destinados a preencher um discurso (“a madame de esquerda”, “o universitário marxista” etc). Fernando Alves Pinto contorce o queixo e baba pelos cantos da boca, Silvio Guindane escancara um sorriso forçado, em gesto de escárnio e desprezo. O conjunto é exagerado, destinado a provocar, a incomodar, mais do que provocar uma reflexão.
Para instaurar um verdadeiro debate de ideias, seriam necessários recuo e ambiguidade. E esses elementos faltam em Jogo das Decapitações. O filme é cínico e empolgado demais com a própria acusação. Como forma de comunicação, esta obra é um fracasso retumbante, dizendo menos sobre o mundo ou sobre a ditadura do que sobre Bianchi, seu furor e sua vontade de fazer um cinema de ódio. Esta poderia ser uma violência satírica (à la Quentin Tarantino), metafórica (à la Laurent Cantet), metafísica (à la Carlos Reygadas) ou poética (à la Bruno Dumont), mas ela é ensimesmada e egocêntrica demais para estabelecer um diálogo. Este é um cinema ousado, sem dúvida, mas retórico e estéril.