Críticas AdoroCinema
3,0
Legal
O Fio de Ariane

No país das maravilhas

por Bruno Carmelo

Esta comédia dramática, apresentada desde os letreiros iniciais como “uma fantasia de Robert Guédiguian”, começa num mundo de estranhezas: a câmera passeia pela maquete virtual de um condomínio residencial de classe alta, perfeitamente branco e asséptico. Em um dos apartamentos, existe uma dona de casa (Ariane Ascaride) cozinhando. Não estamos na sociedade conservadora dos Estados Unidos nos anos 1950, e sim na França contemporânea, onde Ariane prepara o bolo de seu próprio aniversário. Mas nenhum convidado aparece para a festa.

Imediatamente, a protagonista pega as chaves do carro e dirige sem rumo. O diretor não deixa à aniversariante o tempo de ficar triste, de pensar nos motivos desse abandono: ele parte para a ação. Assim, de maneira truncada e sem tempos mortos, a montagem apresenta Ariane fazendo uma série de encontros improváveis, beirando o surrealismo. Guédiguian, cineasta sempre tão próximo do real, decidiu investir no mundo como ele poderia ser.

O resultado é um contraste singelo, e não muito sutil, entre a rotina fria do condomínio de Ariane e o calor humano do pequeno povoado em Marselha. O cenário solar do sul da França serve como fonte de afeto: todas as pessoas (e uma tartaruga) conversam com ela, logo surgem amigos próximos, histórias engraçadas, em outras palavras, aventura. O roteiro fornece à personagem a possibilidade de se surpreender, de enxergar o mundo com um prazer juvenil novamente. A atriz transmite com perfeição a passagem da inércia ao espírito adolescente.

Reunindo figuras marginais e solitárias – uma prostituta, um jovem desequilibrado, um idoso afastado de seus animais de estimação, o triste proprietário de um bar – Guédiguian reforça a sua visão otimista da humanidade. O Fio de Ariane constitui uma ode à solidariedade, algo que aproxima a obra da verve mais engajada do cineasta. O discurso progressista continua presente: cita-se a ferocidade do liberalismo, a burocracia do sistema imigratório, a opressão feminina nas sociedades patriarcais. Por trás do idealismo das imagens, existe um marxista nostálgico na direção.

Esteticamente, tenta-se chegar a um meio termo entre as regras realistas e as experiências formalistas. O projeto está longe da câmera na mão e luz natural dos irmãos Dardenne, mas também se encontra a anos-luz da pirotecnia visual de Jean-Pierre Jeunet e sua Amélie Poulain. Guédiguian aposta na fotografia saturada, nos figurinos e cenários multicoloridos e nos movimentos de câmera discretos para criar uma doce atmosfera de sonho. Ariane faz uma longa jornada, mas Guédiguian não vai tão longe quanto ela.

Os sorrisos, abraços e carinhos fartos de O Fio de Ariane podem dividir os gostos do público. É possível enxergar nesta fábula uma deliciosa defesa da abertura ao desconhecido, ao outro, ao contato humano em geral. Mas também se pode condenar a ingenuidade cor de rosa, principalmente rumo ao final, quando o tom açucarado atinge níveis extremos. De qualquer modo, por retirar o peso dos acontecimentos, O Fio de Ariane torna-se uma obra leve, agradável, mas pouco substancial.