Inquietude
por Francisco RussoO cinema convencional, especialmente o produzido nos Estados Unidos, costuma seguir à risca as regras do início-meio-e-fim dentro de uma história, de forma que todos (ou quase todos) os questionamentos levantados sejam respondidos para que o espectador possa sair da poltrona satisfeito e sem qualquer dúvida sobre aquilo que acabou de ver. Não que isto seja um demérito, existem grandes filmes produzidos neste formato, mas cinema não é apenas isto. É também invenção, ousadia e risco. É justamente esta a proposta de Doce Amianto, novo trabalho do grupo cearense Alumbramento.
O filme logo de cara surpreende pela opção dos diretores Guto Parente e Uirá dos Reis (que também atua) em explorar bastante o binômio cores fortes e roupas bregas. Mais ainda: amianto não é o mineral utilizado para provocar isolamento térmico, mas sim o nome de uma mulher. Que, por sinal, é interpretada por um homem (Deynne Augusto). Mas preste atenção, Amianto não é um travesti – ao menos não oficialmente. Por mais que a personagem possua traços masculinos, o filme sempre se refere a ela como uma mulher como outra qualquer. O mesmo acontece com outra personagem importante, Blanche, uma espécie de fantasma que aconselha Amianto em seus lamentos pelos fracassos amorosos. Para completar, boa parte dos diálogos são declamados, como se os personagens estivessem em uma peça teatral de época, por mais que a ambientação seja dos dias atuais.
Estes e outros contrastes propositais dão a Doce Amianto um ar de estranhamento que é a grande atração do filme – ao menos para quem está disposto a se aventurar por outros tipos de narrativa cinematográfica. Seguindo um ritmo próprio, o filme por vezes quebra a quarta parede e se dirige ao próprio espectador, como num convite para adentrar aquela realidade – e chega ao ponto de abandonar sua própria trama principal para contar outra, secundária e completamente diferente da original. Há um ar de Amazing Stories permanente, devido ao inusitado dos rumos que o filme toma, ampliado pelas brincadeiras visuais empregadas pelos diretores e uma surreal citação a “Hamlet”, de William Shakespeare.
Inquieto e bastante ousado em sua proposta, Doce Amianto é um filme que busca uma linguagem própria e, como tal, paga também um certo preço. A curta duração – apenas 70 minutos – acaba sendo o tempo exato para evitar um certo cansaço do espectador, por mais que ele tenha interesse em estéticas diferenciadas na sétima arte. Ainda assim, é um filme que se destaca justamente pela inquietude de seus diretores, que até poderiam buscar uma fórmula mais convencional – o que tornaria o filme mais palatável ao grande público, por assim dizer – mas preferiram investir pesado neste lado experimental, até mesmo como forma de exercício sobre o cinema.