Arte e inclusão social
por Bruno CarmeloEste documentário acompanha um interessante projeto cultural desenvolvido na Favela da Maré, no Rio de Janeiro: a oficina de dança coordenada pelo coreógrafo Ivaldo Bertazzo, cerca de dez anos atrás. Enquanto muitos projetos sociais contentam-se em ocupar as crianças, afastando-as momentaneamente de uma realidade dura, o projeto tem o mérito de tratar os jovens inscritos como dançarinos profissionais, exigindo o mesmo nível de empenho, disciplina e treinamentos.
O filme é beneficiado pelo olhar astuto dos diretores. Ao invés de se preocuparem com belos enquadramentos ou luzes que valorizam os corpos dançando, os cineastas Helena Solberg e David Meyer preferem o cinema do acaso, da espontaneidade. A câmera na mão está sempre à procura de alguma frase solta, um olhar cansado durante os treinos, um gesto expressivo nos bastidores. Os dançarinos são observados em suas brincadeiras meio infantis, suas relações com a puberdade e a descoberta da sexualidade – sinal de que os diretores também se preocupam em retratá-los como os adolescentes que são. Existe igualmente o interesse de vê-los em suas casas, caminhando pela favela e reproduzindo as coreografias dos treinos no local onde moram.
Esta preocupação louvável com a ética da representação implica em planos pouco elaborados, alguns cortes abruptos, já se privilegia o conteúdo em relação à forma. A estética é bastante convencional, com trilha sonora, depoimentos, narração em off e cartelas indicativas na tela, além de uma textura digital de baixa qualidade. A Alma da Gente parece ter o intuito de servir como ferramenta debate e de reflexão, mais do que como produto artístico autônomo. O cinema, neste caso, torna-se uma ferramenta útil, um meio de expor a vários espectadores uma realidade que talvez desconheçam.
O enfoque no caráter social culmina na decisão de retornar à Favela da Maré, dez anos mais tarde, em busca dos jovens que dançaram com Bertazzo em 2002. Poucos documentaristas preocupam-se com os retratados quando a obra está concluída (Michael Moore, inclusive, é constante alvo de acusações por usar seus personagens como objetos), e pouquíssimos deles estabelecem uma ponte entre o passado e o presente – Cabra Marcado Para Morrer, de Eduardo Coutinho, é uma notável exceção. As filmagens efetuadas com dez anos de separação constituem o grande diferencial e atrativo deste documentário.
O problema está justamente na maneira como o recuso é utilizado. Esse momento é curto, aparecendo apenas no fim do filme, e indicando que os cineastas provavelmente dispunham de pouco material gravado. Quando revê os personagens, hoje adultos entre 20 e 25 anos, Solberg limita-se a perguntar o essencial: em que trabalham, onde moram, se estão felizes. Quando questionados sobre a experiência na oficina de dança, eles respondem com o mínimo necessário: “Gostei”, “foi bom”. A cineasta comporta-se como aquele familiar distante, que telefona uma vez por ano e fica satisfeito em saber que tudo está bem, obrigado, até a próxima ligação. Não é permitido que os entrevistados reflitam longamente, que se expressem além da pauta profissão-família-dança. A espontaneidade tão agradável do primeiro segmento transforma-se em telerreportagem protocolar, com direito a sentimentalismo quando se descobre a morte de um dos personagens.
Mesmo assim, A Alma da Gente consegue efetuar um belo trabalho social. Dança e cinema se unem no mesmo intuito de dar voz e esperança de vida aos adolescentes desfavorecidos. O filme ainda tem a coragem de efetuar uma reflexão lúcida e pouco idealista na conclusão, sobre o fato que poucos destes jovens realmente tiveram um futuro melhor. Por fim, Solberg propôs uma discussão política e social notável, com uma preocupação cinematográfica não tão notável assim.