A burguesa e os selvagens
por Bruno Carmelo“Meu primeiro urso! Meu primeiro urso!” A protagonista desse filme, a rica Josephine Peary (Juliette Binoche), é apresentada em uma cena tragicômica: ela mata o seu primeiro urso, e comemora como uma criança eufórica. A diretora Isabel Coixet acompanha, com a mesma empolgação, o traço de sangue na neve. Esta apresentação é destinada a resumir a personalidade de uma mulher mimada, ingênua, mas arrogante por desconhecer a sua própria ingenuidade. Ignorando os avisos sensatos, ela decide montar uma pequena expedição rumo ao Polo Norte, onde seu marido está tentando se tornar o primeiro ser humano a atingir o extremo norte do planeta.
O começo é marcado pela promessa de um filme de aventura, uma história de sobrevivência extrema em regiões inóspitas. Um narrador literário faz considerações poéticas sobre Josephine, engrandecendo sua personalidade destemida e seu espírito empreendedor. Ela embarca junto de um aventureiro experiente, alguns esquimós, trenós e cachorros. Esta personagem burguesa, como o próprio narrador a descreve, despreza a vida dos “selvagens” (ela suplica que as nativas seminuas cubram os seios) e tenta impor seu modo de vida urbano aos moradores locais. Está construído o embate entre a civilização e o mundo selvagem, entre o homem (no caso, a mulher) e a natureza.
Infelizmente, os aspectos técnicos não acompanham a promessa de uma jornada exploratória. A fotografia contrastada ignora os tons brancos da neve e os tons negros das roupas luxuosas de Josephine. A câmera tremida prefere fechar o enquadramento no rosto dos personagens, enquanto a montagem fragmenta freneticamente os momentos de conflito (a avalanche, a queda na água), de modo que o espectador não consegue acompanhar em detalhes a ação em tela. O espaço, de modo geral, é mal aproveitado: Coixet não faz uso de movimentos panorâmicos, alternância de profundidade de campo ou outros elementos da linguagem cinematográfica capazes de explorar a geografia local.
A estética buscada pela diretora é pouco incoerente. Às vezes Coixet busca o tom épico, através da trilha sonora moderna e grandiloquente, mas em seguida usa recursos do cinema antigo, como a íris fechando a imagem no rosto de Josephine. As cenas de mortes e refeições remetem ao realismo, já as catarses da protagonista abandonada adentram ao melodrama. Juliette Binoche contribui a essa estranheza fazendo uma personagem desagradável, sempre um tom acima do naturalismo. Os momentos de choro na neve, por exemplo, beiram a comicidade.
Nobody Wants the Night ameaça enveredar por um inesperado melodrama lésbico com a entrada de Allaka (Rinko Kikuchi) em cena, por volta da metade da narrativa. As duas mulheres solitárias não se entendem, mas com o tempo unem-se pela solidão e tornam-se muito próximas. O intimismo entre elas é mostrado por cenas estereotipadas, como o jantar em que Josephine ensina a amiga esquimó a comer com garfo e faca. A burguesa “civilizada” usa um chapéu gigantesco dentro do chalé pobre, criando um contraste digno das cenas de My Fair Lady, quando o arrogante Henry Higgins ensinava uma florista a se expressar “adequadamente”.
Desde a sua primeira aparição, Allaka sorri, ajuda, reconforta, mesmo quando é rechaçada. Ela é simplória, animalesca, mas servil e doce como um cão. Com seu inglês hesitante (ora péssimo, ora surpreendentemente articulado), a esquimó conversa com a amiga sobre paixões e homens. Este momento novelesco mostra do que são capazes as mulheres quando realmente amam um homem, valorizando o sacrifício feminino em nome do matrimônio e da maternidade.
Por fim, Nobody Wants the Night faz uma estranha ode à corajosa mulher burguesa, que se martiriza por amor e se torna mais complexa quando entra em contato com pessoas pouco refinadas. Neste pretenso cinema humanista, o mito do bom selvagem e o exotismo da alteridade continuam firmes e fortes.
Filme visto no 65º Festival de Berlim, em fevereiro de 2015.