Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Chocolate

O negro oportuno

por Bruno Carmelo

A interessante história do palhaço Chocolat poderia ser contada por vários ângulos diferentes. Uma possibilidade seria mostrá-lo como um pioneiro, por ser um dos primeiros artistas de circo negros na França. Ele também poderia ser visto como vítima da opressão racista, por ter fugido à vida de escravo, mas ainda enfrentado diversos preconceitos em sua trajetória. Ainda seria possível destacar suas inovações dentro da pantomima circense, seu charme com as mulheres, sua experiência frustrada como ator de teatro, sua compulsão pela bebida e pelos jogos etc.

Em Chocolate, o diretor Roschdy Zem tenta combinar todas vertentes e mais algumas. Nos aspectos técnicos, o filme se desenvolve com destreza: os enquadramentos são belos e clássicos, a fotografia apresenta elegância sem exagerar nas composições, os atores estão competentes, a montagem imprime bom ritmo à trama. Entretanto, o projeto não deixa de parecer comportado demais. O roteiro caminha numa linearidade imperturbável, passando por todos os pontos importantes da vida do biografado sem procurar metáforas, duplos sentidos, imagens simbólicas. Esta é uma simples ilustração da história do palhaço, porém executada com qualidade.

O filme melhora bastante por volta da metade da narrativa, quando deixa em segundo plano o passado de Chocolate para se concentrar em sua descoberta do racismo. Em linguagem contemporânea, diríamos que o segundo segmento apresenta o empoderamento do artista negro, acostumado a interpretar o preconceito como algo “natural”, até ter contato com ideias questionadoras. Essa transição ocorre de modo realista, plausível tanto pela atuação de Omar Sy quanto pela descrição das pessoas ao redor, não necessariamente mal intencionadas, mas reproduzindo pensamentos arcaicos nos quais foram criadas. O palhaço passa a questionar a imagem do negro como inculto, selvagem, perigoso, inferior aos brancos, hiper sexualizado etc.

Chocolate torna-se ousado ao estabelecer comparações entre a escravidão legalizada do século XIX e a escravidão simbólica vivida pelo protagonista no capitalismo do século XX, como artista circense salariado. De certo modo, ele é escolhido em primeiro lugar por sua raça: os parisienses vão vê-lo por ser um raro negro nos grandes palcos, os interioranos querem vê-lo na representação fetichista do canibal africano, os intelectuais lotam os teatros para descobrir um primeiro negro interpretando Shakespeare. Ele nunca é visto apenas como artista, ou como palhaço. Rafael – seu nome original – permanece, do início ao fim, um negro, visto simultaneamente como elemento de afronta e curiosidade. Roschdy Zem nunca se torna tão perverso e complexo na representação do racismo como foi Abdellatif Kechiche em Vênus Negra, mas o diretor não foge dos pontos sensíveis. A crítica ao blackface, por exemplo, causa bastante impacto.

É uma pena que, depois do retrato político eficaz e acessível ao público médio, a conclusão recorra aos clichês das biografias. Letreiros explicativos, imagens reais do palhaço em ação, frases de efeito à beira da morte e reaproximação entre inimigos ocorrem no espaço de quinze minutos, aproximando o filme do melodrama sabiamente evitado até então. Além disso, a última frase pronunciada pelo personagem incomoda por sugerir que Rafael teria se arrependido de sua ambição como artista. Ele parece insinuar que homens negros deveriam se concentar em ter o traseiro chutado por brancos no picadeiro.

Mas essas controvérsias seriam inevitáveis num projeto que busca condensar tantos discursos e tantos pontos de vista. Chocolate carece de coerência e ambição cinematográfica, mas a amplitude de sua aspiração política é louvável. Além disso, o filme traz alguns dos atores franceses mais confiáveis em projetos biográficos, como Olivier Gourmet, Frédéric Pierrot, Noémie Lvovsky, Clotilde Hesme, Alex Descas e Olivier Rabourdin. Com um elenco deste nível e uma equipe técnica tão eficiente, o filme torna-se agradável do início ao fim. Além disso, consegue trazer um nível de reflexão superior à maioria das cinebiografias.