Uma pequena viagem
por Bruno CarmeloSe ainda faz algum sentido falar em “filme de personagem” nos dias de hoje, Habi, a Estrangeira é um deles. O roteiro decide seguir a sua protagonista o tempo inteiro, colando a câmera em seu rosto, seu corpo, seu olhar. O espectador não sabe nada além do que Analía (Martina Juncadella) sabe, conhecendo o mundo pela perspectiva desta garota que, ao fazer a primeira viagem fora do seu vilarejo, encanta-se com tudo que vê.
Por acaso, ela entra em um funeral muçulmano, e como ninguém contesta a sua presença no local, decide permanecer. Analía poderia ter entrado acidentalmente em um circo, uma feira, um casamento, um congresso, um parque. Tudo causaria fascínio nesta protagonista que enxerga o mundo pela primeira vez, como um recém-nascido. Esta impressão é acentuada pela atuação etérea, infantil e quase patológica de Juncadella, que confere à protagonista o ar de uma garota de lugar nenhum, que não tem afeição por ninguém e por nenhuma cultura. Assim, como por inércia ou conveniência, ela descobre a cultura islâmica, aprende a língua árabe e transforma-se em Habiba Rafat.
A trama tenta explorar os diversos lados da crise de identidade, ao contrastar Analía/Habiba com uma brasileira radicada na argentina (Maria Luisa Mendonça), um homem em busca de suas raízes familiares (Martin Slipak) e outros personagens tão errantes e perdidos quanto ela. O roteiro inclusive desenvolve um quiproquó de identidades trocadas, com uma quantidade pouco verossímil de coincidências, mas esta estranheza não consegue alterar a monotonia voluntária da narrativa. Habi, a Estrangeira carrega do início ao fim um ar de leveza e transitoriedade.
Ao mesmo tempo, as imagens sempre fluidas da diretora Maria Florencia Alvarez não conseguem evitar o tom linear, quase superficial, de todo o filme. Nenhuma cena se destaca, nenhum momento busca o peso, o choque, o dúbio, o subentendido. Sobram ao filme os belos momentos naturalistas de Analia sentindo o vento na janela, marcando o vidro com a sua respiração, encostando os cabelos molhados no colo da amiga. Mas nada disso expressa uma visão sobre o mundo, sobre a identidade ou o pertencimento.
Habi, a Estrangeira tem qualidades evidentes de direção e atuação, além de ser marcado por uma louvável disposição a observar seus personagens com calma, agindo livremente no espaço. Alvarez faz uma estreia sóbria na direção, mas também pouco ambiciosa. Fica a curiosidade para saber o que a cineasta poderia fazer com um material mais pungente e multifacetado.