Os delírios do mundo conectado
por Bruno CarmeloCaso o espectador não tenha visto Detona Ralph (2012), não há problema: o roteiro explica de maneira sucinta quem são Ralph e Vanellope, e como nasceu a amizade entre os dois, baseada em suas posições marginais dentro da sociedade dos jogos de Arcade. Passada a breve apresentação, a sequência abandona alguns elementos centrais do filme original. O jogo “Detona Ralph” é relegado ao segundo plano, a nostalgia dos jogos de antigamente se perde, e a mensagem sobre autoaceitação é substituída pelo discurso sobre a persistência das amizades apesar das diferenças.
O roteiro não é muito sutil: vivendo um momento de idílio nos games, os personagens estão à espera de algum conflito para o filme acontecer. A chegada da Internet torna-se a óbvia porta de entrada para aventuras, e não demora para a dupla de amigos se embrenhar pelo mundo da conectividade. Eles adentram o portal proibido com uma facilidade incrível, encontram o objeto desejado (um volante para consertar o carro de Vanellope) em questão de minutos, descobrem o funcionamento deste local quase instantaneamente. WiFi Ralph - Quebrando a Internet não tem dificuldade em criar reviravoltas para seus personagens, embora elas soem fáceis ou bruscas pelo uso de recursos externos, pouco justificáveis pela própria trama. A separação entre Ralph e Vanellope no universo da Internet é o melhor exemplo dos conflitos criados apenas para permitir uma continuação da história.
Se o projeto não empolga por sua destreza narrativa, ele diverte ao imaginar os aspectos físicos do mundo virtual. De que maneira alguém entraria literalmente na Internet? Como as informações viajam por este espaço numérico, e como se efetua uma pesquisa de informações? As melhores invenções do filme provêm das respostas inocentes e criativas a essas perguntas. A transformação do motor de busca num homem carente, e dos pop-ups em funcionários mal pagos de pequenas empresas funciona como boa analogia às relações de trabalho, além representação interessante das megalópoles. O cenário de zeros e uns simboliza tanto o individualismo quanto a massificação da sociedade atual.
As redes sociais e os vídeos caseiros são apresentados com um misto de adoração e alerta. Por um lado, é visível a crítica à futilidade dos vídeos de gatinhos, memes e outras bobagens despejadas pelos sites. Ralph, antes desprezado em seu próprio jogo, aceita reproduzir a estratégia de humilhação na Internet, protagonizando vídeos virais ridículos – até descobrir os perigos que isso causa à sua imagem. Por outro lado, o filme apresenta a carreira de “influenciador digital” como uma aposta de sucesso garantido, acessível a qualquer pessoa. A Internet é vista como um mundo de excessos, capaz de trazer recompensas e perigos com a mesma facilidade – neste sentido, é interessante a criação de uma atmosfera sombria ao dissecar a Deep web, sugerindo pela textura das imagens um conteúdo que não caberia a uma produção infantil.
Outro elemento que salta aos olhos no projeto é a proliferação de marcas. WiFi Ralph – Quebrando a Internet poderia criar um universo de empresas imaginárias, mas prefere inserir uma infinidade de marcas reais de lojas e redes sociais, fazendo uma propaganda extensa de algumas delas. Por mais natural que pareça o product placement neste universo, ele confere um realismo excessivo à fantasia. O choque se torna ainda mais forte diante da inserção das princesas da Disney, apresentadas como funcionárias entediadas, presas numa sala à espera de alguma enquete. A ambientação virtual é lúdica a ponto de transformar usuários reais em avatares de rosto quadrado, ou a ponto de retirar as princesas de seus habitats naturais, mas preserva a necessidade de dinheiro, os insultos nas caixas de comentários e outros aspectos amargos do mundo real.
Através das princesas, o filme consegue extrair alguns de seus melhores momentos, ainda que soem pouco orgânicos em relação ao resto da trama. A Disney demonstra a predisposição a parodiar suas narrativas, brincando com a diferença entre produções “locais” e as da Pixar, além da insistência da Disney em protagonistas órfãs. A comparação de Vanellope com uma princesa, e o discurso sobre o anacronismo das princesas clássicas nos dias de hoje efetua uma boa ponte à introdução de Shank, uma das melhores adições ao filme. A jovem personagem, independente e assertiva, tem gosto pelo automobilismo e dá conselhos a Vanellope sem se transformar numa heroína, muito menos numa vilã. Personagens femininas tão complexas quanto Shank ainda fazem falta à maioria das animações recentes.
O projeto termina com uma mensagem madura a respeito das amizades, além de fornecer algumas cenas de ambição estética notável – especialmente na construção de um grande monstro, rumo à conclusão. O contraste entre os traços simples de Ralph e Vanellope e o mundo ultrarrealista dos jogos online também produz um efeito interessante ao conjunto. Os ambientes perigosos – seja na Deep web, seja no jogo de corrida – revelam-se os mais audaciosos e bem resolvidos esteticamente, em particular por se tratar de uma franquia infantil cuja origem se baseia em doces açucarados, cenários coloridos e imagens claras.
No entanto, o filme dirigido por Rich Moore e Phil Johnston se enfraquece ao abandonar balizas e personagens fundamentais ao original – nem mesmo Conserta Félix Jr. e a Sargento Calhoun ganham uma função real na sequência – além de introduzir um vilão acessório no último terço da trama, quando a narrativa se saía muito bem sem este recurso. Os diálogos didáticos e o discurso ambíguo sobre a Internet e nossa relação com as marcas terminam por diluir o potencial do discurso. Mesmo assim, sobram bons momentos de aventura, uma porção de piadas inspiradas e uma representação cada vez mais orgânica do empoderamento feminino.