Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Desejos da Tarde

Sexualidade à americana

por Bruno Carmelo

Poucos países têm tanta dificuldade em lidar com o sexo e a sexualidade quanto os Estados Unidos. Este é o país em que a classificação etária das obras de arte acredita que adolescentes podem ver todo tipo de violência, mas não de nudez. Um órgão genital é muito mais agressivo do que um cadáver, o que dá uma ideia da maneira como as instituições lidam com o corpo humano. Este é o país em que o capitalismo encoraja o desejo, o consumo, o prazer, enquanto a religião mais tradicional diz que o desejo, o consumo e o prazer são algo a evitar.

Neste contexto amplo, um pequeno filme independente como As Delícias da Tarde enfia o dedo nas feridas do conservadorismo americano. A premissa lembra algum capítulo de Desperate Housewives: Rachel (Kathryn Hahn) é uma mulher entediada, que não transa mais com o marido (Josh Radnor). Um dia, ela conhece a prostituta McKenna (Juno Temple). Famosa por suas causas humanitárias, a dona de casa decide levar a moça para sua casa e "salvá-la", em suas próprias palavras. O vocabulário religioso, de boas intenções ("Eu me preocupo com a alma dela" é uma das frases pronunciadas), está presente desde o início.

Seria muito fácil continuar esta história pelo caminho da moral e dos bons costumes. Se estivéssemos em um grande filme de estúdio, as duas personagens ficariam amigas, McKenna abandonaria a prostituição e se tornaria mais uma dona de casa feliz. Ficaria a lição, para todas as meninas, que fazer sexo por dinheiro não é o caminho a seguir (e que o sexo, de maneira geral, é algo sujo e imoral). Mas As Delícias da Tarde, inesperadamente, combina o ritmo previsível do feel good movie com a defesa da prostituta e o ataque ao American Way of Life. Sem oferecer muitos spoilers, dá para afirmar que McKenna vive muito bem a sua profissão, e não pretende abandoná-la. Cabe a Rachel descobrir porque fica tão desconfortável com a sexualidade alheia, e porque o relacionamento com o marido não funciona.

A diretora Jill Soloway constrói imagens tão maduras quanto complexas para retratar a sua trama. O momento em que Rachel visita o clube de striptease é resolvido sem palavra nenhuma, deixando à talentosa Hahn mostrar todo o seu desconforto apenas pelas expressões, enquanto a alta música do local torna as suas falas imperceptíveis. Já McKenna, quando afirma em uma incrível cena-clímax o seu orgulho de ser prostituta, consegue explicitar todo o desejo e a vergonha dos homens em relação ao corpo de uma mulher que se oferece a eles. As cenas são feitas com iluminação natural, câmera na mão, e os momentos de conjunto entre os atores parecem verdadeiros, realistas. Soloway só recorre à caricatura quanto decide atacar a hipocrisia religiosa: os momentos em que as esposas ricas e judias se reúnem para fazer a caridade são propositadamente grotescos.

Por trás de sua aparência leve e suas piadas engraçadas, As Delícias da Tarde é um filme sombrio, incômodo, por enfrentar diretamente alguns dos tabus mais enraizados na sociedade local. Talvez por isso a crítica tradicional tenha reagido de maneira tão negativa, dizendo que a história "não é realista". Muitos críticos americanos, em seus textos, fizeram questão de dizer que não se identificavam com essa trama, nem com esses personagens, dessolidarizando do discurso humanista e feminista do filme. Enquanto isso, a diretora compôs algumas das cenas de sexo mais ousadas do cinema indie - cenas reservadas tanto à prostituta quanto à esposa entediada. Haja coragem.