Salada cultural
por Bruno CarmeloEsta animação começa com um letreiro na tela, afirmando que a história é fictícia, apesar de ser baseada em fatos históricos. Letreiros do tipo são raros em animações infantis, mas Bons de Bico aborda um período polêmico da História dos Estados Unidos: a instituição do Dia de Ação de Graças, no século XVII, quando os colonos mataram perus em agradecimento à boa colheita de 1621, após um inverno rigoroso. Esta festividade, que teria incluído pacificamente os índios, foi acusada de ser apenas um evento para mascarar o genocídio dos nativos americanos e reescrever a História de maneira mais clemente com os peregrinos.
Mas você não aprenderá nada disso neste filme. Aqui, a passagem histórica é apenas um pano de fundo para contar a história de aves que viajam no tempo para alterar o Dia de Ação de Graças e impedir a matança de animais. Bons de Bico toma a decisão bastante controversa de comparar os animais aos índios, decorando os perus com penas nas cabeças, marcas de tinta no rosto e modo de vida comunitário. Os animais são vistos como amantes da terra, mas atrasados em termos de organização e pouco inteligentes. Vendo por este ponto de vista, a metáfora de colonos brancos devorando os perus/índios em suas fartas mesas ganha um significado ainda mais sangrento.
A mistura cultural não para por aí. O roteiro combina raças, etnias, deficiências físicas e estereótipos regionais com grande entusiasmo. Os personagens são caricaturais e engraçados: o português, o mexicano, o cego, a garota caolha, o grande líder indiano, o louco, o gordo, a mulher. Bons de Bico é um filme que observa a alteridade de maneira tão paternalista quando debochada, achando graça dos exageros de um ponto de vista externo, majoritário, excludente. Algumas representações da mulher, do estrangeiro e da virilidade chegam a ser grosseiras, assim como certas atitudes homofóbicas espalhadas pela história.
Diante desta confusão histórica e social, poderia se esperar que o roteiro, pelo menos, mantivesse os rumos de maneira simples e linear. Mas a trama não tem medo do incongruente, combinando História, ficção científica e romance, incluindo novos personagens a qualquer momento, abusando dos flashbacks rumo à conclusão, mudando as regras estabelecidas – como a máquina de viajar no tempo, que de repente ganha o poder de raciocínio e faz uma revelação de grande importância, ou clones que surgem sem explicação alguma.
Como as ações não têm causas ou consequências esperadas, tudo parece possível, aleatório e coloridamente absurdo – vide a conclusão, uma apologia ao fast food e ao pseudo vegetarianismo que não tolera a morte de perus, mas encoraja a morte de peixes. Esta indefinição é a mesma de outras animações recentes como O Lorax: Em Busca da Trúfula Perdida e Tá Chovendo Hambúrguer 2, que pretendem ser ecologicamente corretas ao atacar a morte de animais, mas não conseguem se desfazer da lógica capitalista e acabam tolerando o assassinato de animais pequenos, em nome da venda de comida industrializada.
A dublagem brasileira consegue desperdiçar o mínimo de relevância histórica do filme. Os nomes de personagens americanos tornam-se brasileiros, os caipiras ianques ganham sotaque nordestino, os índios norte-americanos viram tupis, e mesmo o Dia de Ação de Graças, grande tema do filme, é chamado de Natal na versão nacional. Ora, por que seria tão absurdo que as crianças brasileiras, pouco acostumadas a esta data, descobrissem a existência de um feriado diferente em outro país? Por que vender o filme estrangeiro como se fosse uma produção nacional? Estas adaptações fazem as grandes produções globalizadas, que já têm pouco valor histórico, perder seu valor cultural.
Já os dubladores Leandro Hassum e Marcius Melhem adotam uma postura “cool”, que transforma a aventura em um especial televisivo, com uma sucessão assustadora de gírias e provérbios cariocas. Frases como “E aí, rapaziada, só dei um rolê para ver o que tava pegando” alternam-se com “bolado”, “caraca”, “mermão” e outros. Gags culturais também aparecem, incluindo o “E ainda disseram que eu estava na pior” de Luísa Marilac. A adaptação é tão pop e atrelada ao tempo presente que provavelmente dentro de poucos anos esta dublagem estará obsoleta, incapaz de se comunicar com o novo público. Logo em um filme que pretendia tratar da História...
Bons de Bico poderia ser comparado a outra releitura histórica pop, muito bem-sucedida, da História dos Estados Unidos: Django Livre, de Quentin Tarantino. Este filme, consciente dos rumos que a história tomou, decidia construir uma vingança simbólica dos oprimidos contra os opressores. Sua liberdade em relação aos fatos nunca era desvinculada do real, ela só existia por causa dos fatos, como resposta a eles. Já a animação americana desconstrói o episódio real para não construir nada no lugar. Contenta-se com o caos colorido e alegre. E termina satisfeito consigo mesmo, mostrando colonos do século XVII comendo pizza da empresa Chuck E. Cheese junto dos amigos perus, enquanto um gigantesco ovo futurista espera seus passageiros para fazer viagens pelo espaço-tempo.