De volta às origens
por Lucas SalgadoQuem conhece Pedro Almodóvar por seus últimos trabalhos, como Fale com Ela e Má Educação, tem tudo para se surpreender com Os Amantes Passageiros, que é uma comédia verdadeiramente escrachada. Os fanáticos pelo diretor espanhol, no entanto, vão lembrar de seus primeiros filmes como Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão, Labirinto de Paixões, Maus Hábitos e Que Fiz Eu Para Merecer Isto?.
Almodóvar volta a trabalhar com vários personagens, que vivem várias histórias, por mais que estejam em um só ambiente. O sexo também é elemento fundamental a trama e a crítica religiosa não deixa de dar as caras. Muitos vão tratar o longa como um "Almodóvar menor", tendo em vista que é mesmo uma obra menos pretenciosa. Ainda assim, me incomoda o termo menor, uma vez que é um filme melhor do que alguns de seus dramas recentes, como Abraços Partidos e A Pele que Habito.
Os Amantes Passageiros é quase que uma chanchada espanhola. Começa com uma música clássica ("Pour Elise", de Beethoven) modificada com um ritmo pra lá de portenho. Tudo isso em frente de uma animação bem colorida. Logo em seguida, nos deparamos com Antonio Banderas e Penélope Cruz em uma situação atrapalhada em uma pista de aeroporto. Parceiros de longa data do cineasta, os dois astros fazem uma participação afetiva no filme, mas de grande importância para o trama.
O restante da ação (ou boa parte dela) acontece dentro de um voo, com três comissários de bordo surgindo como personagens principais. Eles tentam entreter os passageiros da classe executiva uma vez que as televisões não funcionam e que uma situação ameaçadora se apresenta.
A obra é propositalmente exagerada, ao ponto de Almodóvar apontar este como sendo seu "filme mais gay". Tratando a homossexualidade com muito humor, o diretor coloca seus três comissários como gays, enquanto que o piloto é bissexual e o copiloto é heterossexual, mas infeliz no casamento. Ele usa os estereótipos como elementos cômicos e não para ofender. É importante reforçar que não é apenas o homossexual que é retratado de forma estereotipada, isso também acontece com relação a sul-americanos e mexicanos.
Javier Cámara, Carlos Areces e Raúl Arévalo se destacam na pele dos comissários, enquanto que Antonio de la Torre e Hugo Silva vivem piloto e copiloto, respectivamente. Já a tripulação da classe executiva é composta por Lola Dueñas, Cecilia Roth, José Maria Yazpik, Guillermo Toledo e José Luis Torrijo. Todos personagens são bem abrigados pelo roteiro do próprio Almodóvar. São várias histórias paralelas, todas curiosas e a maioria absurdas.
Mesmo sendo um filme bem exagerado, bem espanhol, Los Amantes Pasajeros (no original) também funciona como uma história internacional, até porque é passado em um ambiente marcado pela padronização, que é um avião. A produção, inclusive, brinca muito com isso ao ignorar de forma bem criativa os passageiros e funcionários da classe econômica. É brilhante notar a expressão de tédio dos comissários e dos passageiros diante do aviso de segurança. O lado internacional também pode ser visto a partir de brincadeiras com outras línguas em expressões como "je suis desolé" e "mistake".
A ambientação quase que permanente num avião é ótima, mas isso acaba tornando notória a queda de ritmo e interesse quando o longa deixa o local, como no núcleo em que aparece a personagem de Paz Vega. Fica a sensação de que Almodóvar queria apenas arrumar um espaço para a atriz.
Com um roteiro ácido que não economiza no abuso de drogas, álcool e vários outros tabus do politicamente correto, o diretor cria uma comédia que faz rir, e muito. Tem a dominatrix filha de católicos, o hétero que teve uma experiência homossexual, o assassino que não mata mulheres e por aí vai, todos personagens exóticos e cativantes.
Outro ponto positivo da obra é a seleção musical. Além da brincadeira com Beethoven nos créditos iniciais, o longa conta com um número bem interessante e divertido ao som de “I’m so excited”, canção marcante do grupo feminino The Pointer Sisters. Mas não é apenas a trilha que merece elogios. A fotografia de José Luis Alcaine, parceiro constante do diretor, também chama a atenção pelos tons fortes e pela forma quase que televisiva com que investe naquele cenário principal.
Podem chamar o filme de um "Almodóvar menor", mas acaba abordando temas sérios, ainda que com muito humor. Cita a crise na Espanha, a dependência da tecnologia e ainda questões como virgindade, fidelidade e confiança.