Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Olho Nu

Olho carinhoso

por Renato Hermsdorff

Sobre – e com – o ator/ cantor Ney Matogrosso, Olho Nu não é um documentário tradicional. Para o bem e para o mal. Para o mal no sentido de que, quem for ao cinema sem noção nenhuma (difícil) da vida e carreira do artista, provavelmente vai sair da sala sabendo tanto quanto como entrou. Não espere um tom jornalístico, uma linearidade, uma cronologia ou sequer depoimentos dos amigos de Ney.

Porém, quem teve o mínimo contato com a obra do artista deduz que Ney nunca foi linear. Portanto, ainda bem que o filme de Joel Pizzini não é assim. Com um personagem conhecido pela subversão, o diretor opta por fazer um filme nessa linha estética.

O projeto foi concebido inicialmente para a TV, a partir de cerca de 300 horas de imagens do acervo do cantor, que é coprodutor da obra. E, temendo o risco da nostalgia, Pizzini resolveu filmar umas outras tantas 200 horas, sobretudo na terra natal de Ney Matogrosso, Bela Vista, no Matogrosso do Sul; no sítio do cantor, em Saquarema; e no apartamento onde ele mora. Ponto para a direção.

O resultado é de uma riqueza documental e poética incríveis, da época dos Secos & Molhados, nos anos 1970, à turnê do disco Inclassificáveis, de 2008, incluindo a influência dos cantores de rádio e a descoberta de Brasília, numa viagem musical que contempla trechos de, nada mais, nada menos, que 85 canções ao longo da projeção.

A começar pelas imagens de abertura do longa de 101 minutos, do pouco conhecido curta-metragem experimental de 1988, Caramujo-Flor, do próprio Joel, baseado na obra do poeta Manoel de Barros e que traz Matogrosso como protagonista. Do acervo “novo”, Ney passeia refletido no espelho quebrado no meio da natureza mostrando que o vigor físico – e a presença marcante – que lhe é característico continua intacto mesmo depois dos 70 anos de idade.

Pelo lado afetivo, há gravações (em vídeo) da mãe do cantor que permitem reconstruir sua infância. E (em áudio) do pai, militar, figura cara à personalidade do cantor, seja pelo embate natural entre uma alma contestadora como a do artista com o conservadorismo familiar, seja pela herança da disciplina adotada pelo cantor em seu processo criativo. Assim, é possível chegar a um veredicto (quase) completo da complexidade do retratado/ homenageado.

Sobre Cazuza - é conhecido o relacionamento amoroso entre os cantores -, o autor de exagerado aparece no filme ao lado de Ney, que declara ter “sobrevivido” a uma época em que pessoas com quem se relacionou morreram em decorrência de complicações da AIDS. E quando vestiu um terno, para a turnê de O Pescador de Pérolas, Ney foi acusado de careta (logo ele!). Essas passagens estão no filme.

Mas a obra de Joel Pizzini não aprofunda alguns episódios referentes a outros momentos importantes da vida do cantor, como a experiência com as drogas, sobretudo o consumo de daime, e o quiproquó na saída dos Secos & Molhados. (O diretor se defende dizendo que, para abordar fielmente o primeiro assunto, teria que viajar à Amazônia com o cantor para pesquisar a experiência – fato dificultado por falta de tempo e orçamento. Já sobre a dissidência do grupo musical, ele optou por não polarizar). Essas ausências deixam uma leve sensação de “chapa-branquisse” na saída da sala.

Polêmicas à parte, Olho Nu é um rico filme-ensaio (e não uma cinebiografia tradicional, como definiu o diretor) sobre um dos mais complexos artistas brasileiros da história.