A religião como produto
por Francisco RussoA adoção do cinema como indústria, como acontece em alguns países onde a atividade é autossustentável, faz com que surjam nichos específicos para atingir determinado tipo de público. O objetivo não é propriamente produzir cinema de qualidade, mas atender os anseios de um grupo de forma que se possa faturar em cima dele. Um destes casos explícitos é O Céu é de Verdade. De olho nos espectadores cristãos, o filme foi milimetricamente calculado para atender seu público alvo – em especial, aquele que acredita que a sala de cinema é também lugar de pregação religiosa. Para tanto, seguiu algumas regras básicas.
A primeira delas foi explorar uma história “real”, que pudesse trazer ao longa uma certa credibilidade. Neste sentido, o livro escrito pelo pastor Todd Burpo onde narrava a visita do próprio filho ao paraíso, após quase morrer na mesa de cirurgia, parecia ideal. Trazia a devoção ao cristianismo, um punhado de boas intenções e questionamentos que valorizavam a fé e a crença em algo superior. Outra regra foi aproximar o núcleo central da história, a família de Burpo, para os dias atuais. Desta forma, o garoto é fã do hino rock’n’roll “We Will Rock You” e há até insinuações sexuais entre Todd (Greg Kinnear) e a esposa, Sonja (Kelly Reilly) – sem qualquer cena mais explícita, é claro. Tudo para que eles passem a imagem de gente como a gente, sem qualquer tipo de radicalismo. Tudo para que o público alvo, em sua poltrona, possa se identificar com quem está na telona.
Só que, em meio a tanto planejamento, O Céu é de Verdade tem um grande problema dentro de sua própria lógica: é bastante contraditório justamente naquilo que deveria mais atrair o público cristão. Afinal de contas, como justificar que um pastor, acostumado a pregar os escritos da Bíblia, passe a questionar sua fé justamente quando enfim consegue uma “prova” de que o paraíso existe, através do jovem Colton (Connor Corum)? Não faz o menor sentido! Ainda mais porque a versão do paraíso apresentada não é diferente daquela que o próprio pastor vendia em suas pregações, ou seja, não há conflito de ideais que justifique esta situação insólita.
Ok, pode-se deduzir que o motivo de tamanha dúvida seja devido à presença de espíritos na história, algo descartado de imediato pelo bom cristão. Só que a crise existencial vivida pelo pastor começa bem antes deste detalhe da trama vir à tona e, ainda assim, a possível existência de espíritos jamais é questionada pelos demais personagens, como algo pouco condizente aos preceitos da igreja. Ou seja, não é uma justificativa plausível. E, diante da ausência de argumentos sobre o porquê de tamanha dúvida, o filme como um todo perde o sentido. É bem verdade que as boas intenções estão lá e as pregações religiosas também. Mas, afinal de contas, por qual motivo?
Outro problema grave da história é em torno do garoto Colton e a forma como ele, aos poucos, começa a falar sobre o paraíso. Palavra esta induzida pelo próprio pai através de perguntas ao filho, que apenas passou a repeti-la. Em determinado momento, o filme levanta a tese de que “a Bíblia diz que sempre devemos acreditar nos nossos filhos”. Entretanto, o que se vê no filme é uma manipulação explícita de informações, mesmo que isto ocorra de forma não intencional. Neste sentido, o filme-antítese é A Caça, que mostra com brilhantismo como uma criança pode mentir sobre algo sério sem que tenha noção do que está fazendo, justamente por ter sido levada a tanto pelas circunstâncias de momento. Para quem assistiu A Caça, os argumentos apresentados pelo roteiro soam como piada.
Deixando um pouco de lado as motivações do protagonista, O Céu é de Verdade falha também como cinema. Com ar de telefilme, o longa-metragem tem um longo prólogo que pouco serve à história como um todo – no máximo, como apresentação dos personagens. As frases puritanas estão espalhadas por todo canto e a cartilha cristã é defendida também em uma citação à obra máxima do autor C.S. Lewis, As Crônicas de Nárnia, implicitamente lembrado na parábola do leão. A direção convencional de Randall Wallace (de O Homem da Máscara de Ferro e Fomos Heróis) não ajuda a minimizar o baita estrago causado pelo roteiro. E, para quem ainda duvida que O Céu é de Verdade foi produzido como um típico produto a ser consumido, basta reparar em qual super-herói é ressaltado durante boa parte da história, por ser o favorito do pequeno Colton: o Homem-Aranha. Não por acaso, personagem cuja série de filmes é bancada pela Sony, produtora também deste longa-metragem. Tudo se encaixa.