O amor à prova do tempo
por Bruno CarmeloA trilogia composta por Antes do Amanhecer (1995), Antes do Pôr-do-Sol (2004) e Antes da Meia-Noite (2013) conquistou um espaço singular no mercado de cinema. Carinhosamente apresentada por Ethan Hawke como “a série menos lucrativa de todos os tempos”, ela parte de um conceito muito simples: um homem e uma mulher apaixonam-se e passeiam pela cidade, discursando sobre amor, sexo, trabalho... As aspirações filosóficas, muito originais dentro do gênero da comédia romântica, já bastam para conferir à singela franquia um lugar de destaque.
Mas os filmes têm outras qualidades. Antes do Amanhecer abordava o acaso, e levantava a importante pergunta da idealização do amor (“Devemos nos encontrar novamente, ou guardar essa noite única nas nossas memórias?”, perguntavam os personagens). Antes do Pôr-do-Sol trocava o romantismo por uma abordagem neurótica, psicanalítica: os dois personagens não estavam felizes com suas vidas, e refletiam sobre o papel do sexo nessas frustrações. Para trazer a história ao tempo presente, o segundo filme decidiu experimentar a trama em tempo real. Foram 80 deliciosos minutos passeando com os personagens, mas em Paris ao invés de Viena.
Se o humor mordaz já era a marca dos dois primeiros filmes, desta vez o trio composto por Linklater, Ethan Hawke e Julie Delpy, todos os três roteiristas, decidiu aplicar o sarcasmo à evolução de seus personagens. Os 20 anos de idade foram mostrados como a época das descobertas, os 30 representaram a entrada na vida adulta, e os 40 correspondem à crise de meia-idade. Casados, Céline (Delpy) e Jesse (Hawke) têm duas filhas gêmeas, e tratam com carinho o filho que Jesse teve em um casamento anterior.
Além da evolução no tempo, Antes da Meia-Noite consegue evoluir também na estrutura. Mantendo o formato clássico que consagrou os dois primeiros filmes (a conversa e os passeios entre o casal central), ele acrescenta elementos novos e bem-vindos: outros casais amigos, outros jovens que encontram o amor pela primeira vez. O novo país visitado é a Grécia, com um horizonte marcado por ruínas – representação da falência do relacionamento entre os protagonistas.
De fato, tudo neste roteiro evoca o fim: a arquitetura grega que se desfaz, dois jovens apaixonados que duvidam permanecer juntos por muito tempo, o homem idoso que perde a esposa. A partir de uma longa cena de almoço, festejando os prazeres sexuais e criticando os relacionamentos tradicionais, o roteiro anuncia que vai tocar em um assunto delicado: a perenidade do amor. Este primeiro encontro entre amigos niilistas pode ser repleto de piadas hilárias e paisagens belíssimas, mas deixa um gosto realmente amargo na boca.
Os fãs de comédias românticas tradicionais podem acreditar que, depois de provocar o amor, é óbvio que a produção vai voltar atrás, mostrar que a união vence todos os obstáculos. Mas Antes da Meia-Noite é de uma franqueza e coragem ímpares, aprofundando seu tema ao limite do desconforto. As conversas entre Céline e Jesse continuam, associando o amor à morte. Se a avó dela falecia no segundo filme, agora é a vez da avó dele falecer. A morte, lembrada no filme anterior com nostalgia e ternura, conduz ao medo desta vez: como os avós dele conseguiram ficar mais de 70 anos juntos? Isso é mesmo possível?
O terceiro filme, além de mais maduro (nos diálogos, na atuação segura da dupla central), é de longe o mais sombrio. Neste sentido, a meia-noite do título é um marco temporal perfeito. Mesmo a tradicional cena dos amantes admirando o pôr-do-sol – referência ao filme anterior – ganha um novo significado. Ao invés de apreciarem o espetáculo natural, Céline e Jesse permanecem estoicos, contando os segundos até a luz desaparecer. É magnífico o momento em que ela anuncia que o sol se foi, e olha desiludida para o marido, como se atribuísse a ele a culpa da passagem do tempo. O pôr-do-sol perde seu romantismo, e se transforma em uma prova irrefutável da impermanência das coisas.
O discurso pouco esperançoso do casal evolui, e transforma-se em uma briga. Como um momento realmente íntimo não poderia acontecer nas paisagens abertas da Grécia, o roteiro envia os dois para um quarto de hotel. Lá dentro, o prelúdio de um ato sexual é interrompido por uma discussão longa, violenta, brutal. Delpy, com os seios à mostra, perambula pelo quarto, em um dos momentos de nudez mais naturais do cinema americano recente. (Talvez seja isso, aliás, que tenha valido uma classificação etária tão dura nos Estados Unidos: os americanos não podem compreender um par de seios não erotizados).
Os fãs do amor entre o casal, em especial aqueles que acompanharam o nascimento e desenvolvimento desta história nos dois primeiros filmes, podem ficar com o coração apertado ao ver essa briga sem fim, essas palavras tão duras. Em algum momento, eles têm que mudar de ideia e fazer as pazes, não é? Nada é menos certo. O que poderia ser um baile de dramaticidade e nostalgia (do tipo “Como éramos felizes antes”) cede espaço a mais uma ousadia e inteligência do diretor, que enfrenta a discussão em planos fixos, sem se aproximar dos rostos nem ceder às lágrimas.
Por fim, Antes da Meia-Noite deve surpreender tanto os admiradores da franquia quanto os espectadores acostumados aos filmes românticos convencionais. Cruel, franco e sem concessões, esse projeto esteticamente simples ousa levantar a bandeira de um amor realista, possível, do tipo que se transforma ao longo dos anos, e que também pode – como um organismo vivo qualquer – definhar e morrer.