Críticas AdoroCinema
3,0
Legal
Até o Último Homem

O bom cristão vai à guerra

por Bruno Carmelo

À primeira vista, este filme parece combinar a estrutura típica do cinema de guerra com o mecanismo tradicional do cinema religioso. O protagonista representa uma fusão de ambos: Desmond Doss (Andrew Garfield) é ao mesmo tempo um jovem pacifista, temente a Deus, e um soldado destinado a salvar pessoas no campo de batalha da Segunda Guerra Mundial. Sua única condição: jamais tocar em uma arma, devido a traumas de infância. Como ser um pacifista em meio à guerra? Como lutar contra inimigos armados sem possuir instrumentos de defesa?

Desmond sublinha a contradição do heroísmo americano: por um lado, não tirar a vida de uma pessoa é percebido como virtude, por outro lado, tirar a vida de inimigos que nos atacam é considerado um ato de bravura. De que modo se concilia o mandamento “Não matarás” com o patriotismo guerreiro? Até o Último Homem fornece uma leitura didática, mas interessante, deste paradoxo. A primeira solução é retirar a humanidade do inimigo: os soldados mais sangrentos enxergam nos japoneses uma figura satânica, portanto digna de ser combatida com violência. A segunda é se isentar de culpa pelo alter ego de grupo: não existe problema matar se isso for praticado por todos, como uma ordem direta dos superiores. Os soldados não se sentem responsáveis por cumprirem o que se espera deles. Talvez por isso a decisão do personagem principal soe como ofensa tão grande: ele quebra o acordo tácito de que matar é algo defensável, contanto que todos os façam.

O drama questiona, portanto, a violência dos “homens de bem”, a incompatibilidade entre amar o próximo como a si mesmo e amar apenas o próximo, mas não o diferente. Este seria um debate relevante não apenas em tempo de guerras oficiais, mas também em momentos de proliferação de crimes homofóbicos, chacinas em prisões, ladrões amarrados a postes etc. A lógica individualista permite que pessoas boas apliquem violência contra as ruins. Mas quem está autorizado a distinguir as primeiras das segundas? O prelúdio da barbárie social é sintetizado pela figura martirizada de Desmond. Andrew Garfield faz questão de interpretá-lo como um tipo quase autista, um novo Forrest Gump. Sua inaptidão social rivaliza apenas com sua ingenuidade e sua integridade durante o combate. Este é o homem disposto a ajudar qualquer um, mesmo os soldados que o maltratam e um inimigo ferido.

Felizmente, Até o Último Homem não defende a postura do protagonista como única possível. O diretor Mel Gibson sugere que a conduta do oficial pacifista possui seu espaço no confronto, porém não exclui a necessidade de figuras centralizadoras como o sargento Howell (Vince Vaughn) ou o corajoso soldado Smitty (Luke Bracey), que maneja uma arma como ninguém. No entanto, quando estes homens são feridos ou têm seus membros destroçados por uma granada, é Desmond quem corre para fazer torniquetes e aplicar morfina. Existe espaço para a paz em meio à guerra, sugere o filme, assim como existe espaço para a religião enquanto homens se matam selvagemente. A cena em que o batalhão espera pelo fim de uma prece antes de atacar o inimigo simboliza a ideia de que é possível matar e permanecer puro aos olhos de Deus.

O diretor faz questão de ressaltar que, embora a postura do jovem seja uma exceção, esta história realmente aconteceu. Como em muitas cinebiografias preocupadas em atestar sua veracidade, Até o Último Homem se conclui com trechos documentais, nos quais antigos membros do exército e o próprio Desmond reafirmam passagens que o espectador acaba de ver na ficção. Apesar de respeitar a veracidade de fatos, o cineasta não se preocupa em humanizar a guerra no que diz respeito à estética cinematográfica. Quando entram em cena as longuíssimas batalhas, Gibson se deleita com imagens de corpos dilacerados em câmera lenta, sangue jorrando por todos os lados e a luz amarelada das explosões contrastando com a paisagem cinzenta da colina Hacksaw.

Assim, Desmond pode até questionar o prazer belicista dos colegas, mas Gibson joga no time dos demais soldados. O espetáculo da violência é visível em cada fotograma deste projeto que não teme ser exagerado, mesmo kitsch em suas composições (os chroma keys no final são particularmente falsos, enquanto o banho redentor do herói coberto de sangue beira a telenovela), retratando o inimigo sem o mínimo sinal de humanidade ou personalidade. A direção reproduz a contradição de seu personagem principal, sem solucioná-la. Por um lado, o filme se orgulha de ser uma grande produção de guerra, repleta de cenas viris e impactantes, por outro lado, pretende ser piedosa e tolerante como pediriam as escrituras religiosas. Talvez o sincretismo entre o herói guerreiro e o herói cristão não se opere tão facilmente assim.