Para complicar
por Francisco RussoUm filme dirigido por Jean-Luc Godard jamais é fácil. Mesmo em seus primeiros trabalhos, como Acossado e Alphaville, já havia uma inquietação que o fazia muitas vezes fugir do convencional em se tratando de narrativa. Com o passar dos anos, Godard tornou-se cada vez mais radical e, para alguns, insuportável. Nossa Música e Film Socialisme beiram o experimental, com muitas colagens envolvendo sons, imagens e cores que fizeram com que seu cinema se aproximasse cada vez mais da videoarte. Adeus à Linguagem, seu trabalho mais recente, pode ser encarado como uma continuação desta investigação pessoal sobre as mais diversas formas de praticar a sétima arte. Só que, desta vez, o diretor está de olho na tecnologia 3D – e é ela quem torna seu filme tão interessante.
Por mais que o título insinue um rompimento brusco com toda e qualquer linguagem, não é bem isto que o filme entrega ao espectador. Apesar de haver uma indisfarçável dificuldade de comunicação entre os personagens principais, Godard também explora o 3D como linguagem cinematográfica. Diante disto, o diretor cria para si certos desafios a serem vencidos, como fica nítido na cena em que uma narração em off ressalta a dificuldade em retratar uma floresta distante a partir de uma janela. Mais ainda: Godard cria uma sequência única, aplaudida em cena aberta quando exibida no Festival de Cannes 2014, em que utiliza a sobreposição de imagens para criar um impressionante efeito de ilusão. É como se o diretor, com mais de 80 anos, se divertisse com seu “novo brinquedo” nos sets de filmagens e, ainda assim, ousasse.
Também por isso, Adeus à Linguagem é um filme mais palatável em relação aos últimos trabalhos do cineasta - o que não significa dizer que seja acessível. Godard mantém seu estilo provocador ao lançar frases soltas para ver a reação do público, como o questionamento sobre o uso de assassinatos como meio de diminuir o desemprego. As colagens estão lá, sempre presentes, assim como sons e cores aleatórios. Em uma trama que aborda questões conceituais (e por vezes filosóficas) de forma desconexa, o longa entrega ao espectador pequenas pílulas sobre o tema em questão. Não há a intenção que se compreenda absolutamente tudo o que é exibido, tanto que o próprio Godard pediu que nem todas as falas fossem traduzidas na legenda – a confusão, ou a dificuldade de compreensão, faz parte da experiência que é o próprio filme. Assim é o cinema de Godard, feito para iniciados e aficionados pelo seu estilo peculiar.
Apesar de todas as dificuldades inerentes a um trabalho deste perfil, Adeus à Linguagem merece atenção pela beleza de certas imagens, muito mais pela forma com a qual foram retratadas. Trata-se de um filme tecnicamente interessante, especialmente para aqueles que se interessam por linguagem cinematográfica, cuja proposta é também facilitada pelo fato de ter apenas 70 minutos. As analogias entre natureza morta e natureza animal, com observações à nudez dos animais (o bicho-homem inclusive), também ganham destaque ao ressaltar a pouca importância do casal protagonista (Héloïse Godet e Kamel Abdelli) e o carisma do cachorro que os acompanha – não foi à toa que ele levou o Palm Dog daquele ano. Um filme interessante, que merece ser visto em 3D, mas com um alerta: Godard não é diretor de fazer concessões. Vá preparado!
Filme visto no 67º Festival de Cannes, em maio de 2014.