Muito beijo, pouca mordida
por Renato HermsdorffChristian Grey (Jamie Dornan) é jovem, discreto, podre de rico, dono de um tanquinho invejável; Anastasia Steele (Dakota Johnson) é mais jovem ainda, estudante de literatura e inocente. É a partir do encontro desses dois personagens que se constrói a trama central de Cinquenta Tons de Cinza. Dois arquétipos (no caso, clichês mesmo) que, se não fosse por um gosto peculiar do Sr. Grey (como ele gosta de ser chamado) passariam despercebidos no imaginário coletivo mundial: ele é adepto do BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo).
A informação faz sentido para o caso de você ter hibernado nos últimos quatro anos. Baseado na obra da escritora E. L. James lançada em 2011, a adaptação hollywoodiana da diretora Sam Taylor-Johnson para a história que já vendeu mais de 100 milhões de exemplares no mundo todo (a trilogia), no entanto, está mais para o make love do que para o fuck, ao contrário do que preconiza o protagonista.
Para além das frases de efeito (que ele pronuncia), da voz sussurrada (que ela entoa), das interpretações sofríveis (na verdade, bem mais dele do que dela, Dornan, quase robótico, parece ter sido orientado a seguir contido, mas só transparece tensão), uma trilha original de um pornô de quinta e de todo o riso involuntário que o conjunto provoca, há, sim, nudez a dar com pau, como se diz (muito mais dela do que dele, há de se observar o conservadorismo). E esse é o ponto “ousado” (aspas que se justificam pelo caráter da discriminação de gênero) do filme.
Passada a primeira metade de um moralismo vergonhoso (além de exigir exclusividade na relação, ela nem sequer pode consumir álcool, a pedido do "dominador"), os dois embarcam na relação sexual propriamente dita. Há boas cenas, de fato bem dirigidas, mas, ao contrário do que se poderia imaginar, o sexo é politicamente correto no trato, asséptico (ninguém sua) até na construção do cômodo que deveria ser palco de altas sacanagens – e com câmera lenta para suavizar a chicotada.
E a narrativa é contraditória. O personagem que bate o pé ao dizer que não é do tipo “corações e flores”, na cena seguinte está passeando de mãozinhas dadas com a donzela indefesa. Apesar de machista, a submissão de Ana não chega a ser misógina, afinal, é consentida e prevista em um inacreditável e literal contrato, como os de aluguel, dos mais chatos, que ele propõe – e cujas cláusulas mais “chocantes” ela faz questão de excluir, em mais uma atitude retrógrada.
Era de se esperar, no entanto. Hollywood não gosta de quebrar tabus. Mas o buraco é mais embaixo quando, para justificar uma preferência sexual, digamos, não convencional, a obra impõe a necessidade de atrelá-la a um trauma (mesmo que o filme não se alongue na questão), a uma condição “fora do normal”. E precisa de justificativa? O sexo, mesmo o não convencional, não pode ser prazeroso pura e simplesmente (desde que acordado entre as partes)?
Ok, vamos assumir que se trata de uma história de amor, acima de tudo. Sob essa ótica, Cinquenta Tons de Cinza é (só) mais um melodrama açucarado no cardápio de Hollywood - de final surpreendente, diga-se. Enquanto não se decide se ele cede ao romantismo dela ou se ela abre mão das suas convicções para brincar no mundo dele, há um interessante jogo de perseguição – bem-humorado – entre os dois.
Mas as situações resultam repetitivas ao longo das duas horas de projeção. E os conflitos seguem fracos. No fim, o filme está muito mais para a palheta sépia mórmon da saga Crepúsculo do que para a sensualidade de cores vibrantes de 9 1/2 Semanas de Amor. Ou seja, muito beijo, pouca mordida.