Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Os Últimos Cangaceiros

Os heróis bandidos

por Bruno Carmelo

Lampião, Maria Bonita, Dadá e Corisco são alguns dos nomes mais conhecidos do cangaço brasileiro. Mártires de um movimento bem organizado, tornaram-se mitos através das gerações. Pouco se conhece sobre o lado humano dos cangaceiros, pelas vozes deles próprios. Esta é a lacuna que o interessante documentário Os Últimos Cangaceiros pretende preencher, acompanhando a história de vida de um casal idoso que integrou o bando de Lampião, e depois reconstruiu a vida com outro nome, por medo de represálias.

Não à toa, as imagens começam com José Antonio Souto, vulgo Moreno, e Jovina Maria da Conceição, conhecida como Durvinha, vestindo os uniformes de cangaceiros que usavam mais de 50 anos atrás. O diretor Wolney Oliveira ataca diretamente o imaginário popular, os símbolos que adentraram a cultura nordestina sobre o tema. Depois de fazer poses heroicas – propositadamente artificiais – com revólveres, o casal volta a usar suas roupas comuns para compartilhar suas memórias.

O sucesso do documentário deve-se em parte à presença forte dos dois entrevistados, ainda lúcidos na época – ambos já estão falecidos – e com um vigor impressionante nos relatos da vida de cangaceiro. Com o distanciamento imposto pela passagem do tempo, além da inconsequência pelo fato de estarem perto da morte, ambos abrem o coração com grande naturalidade. Os filhos, amigos e historiadores do cangaço contribuem ao retrato complexo deste grupo social que, ao invés de tentar de se esconder da lei, mostrava-se com vaidade e orgulho, convicto de sua impunidade.

Mas talvez o aspecto mais interessante de Os Últimos Cangaceiros seja a discussão em torno do estatuto moral de pessoas como Moreno e Durvinha. Bandidos e assassinos assumidos, eles são recebidos por prefeitos como heróis, participando de programa de rádio, contando a famílias deslumbradas como mataram dezenas de pessoas. O processo histórico transformou o mito do ladrão romântico em algo assimilável às novas gerações, justamente em um momento tão moralista e condenatório no que diz respeito às práticas criminosas. Talvez os mesmos políticos que acolhem o casal com tanto orgulho sejam aqueles que pedem pela redução da maioridade penal, por punições cada vez mais duras.

Os cangaceiros, fragilizados pela idade e pelo esquecimento social, foram fetichizados e transformados em vovôs queridos, que contam “causos” do passado como se fossem histórias inventadas, ou alucinadas. Felizmente, o diretor nunca deixa os relatos parecerem irreais – ele filma de perto a cicatriz de bala na perna de Durvinha – assumindo sua responsabilidade ética na representação dos dois. O filme observa os dois com uma saudável curiosidade, como um objeto de estudo digno do interesse coletivo.

O documentário é beneficiado por um trabalho excelente de som e de imagens de arquivo. Os trechos de ficções inseridas (O Cangaceiro, Baile Perfumado etc.) são retrabalhados e usados em momentos apropriados, enquanto fotografias são animadas, coloridas, transformadas em um conjunto vivo e lúdico. A paisagem sonora, com seus diálogos e efeitos de tiros, são retratados com esmero. Para não perder nenhum detalhe do linguajar rebuscado e dicção difícil de Moreno e Durvinha, Wolney de Oliveira opta pelo sempre controverso, mas justificado, uso de legendas.  

Exibido em festivais desde 2011, Os Últimos Cangaceiros entra em cartaz apenas em 2015 – prova da dificuldade do mercado em absorver obras de cunho investigativo e histórico. Mas este filme divertido, de ritmo ágil e discurso complexo, pode encontrar seu público. Depois de tantas obras valorativas e idealistas sobre o cangaço, é louvável encontrar um filme que insira estas personalidades em um contexto cultural, social e político, refletindo sobre seu impacto nos tempos presentes.