Críticas AdoroCinema
4,5
Ótimo
Bem-Vindo a Nova York

A arte de preencher lacunas

por Renato Hermsdorff

Quem dá as boas-vindas neste Bem-Vindo a Nova York é Gérard Depardieu – ao que tudo indica o ator, não o personagem. Na cena de abertura, ele aparece no centro de uma espécie de minicoletiva de imprensa, em que revela ser um “amoral”.

O que se segue é Gerard Departieu caracterizado como Mr. Devereaux, o poderoso presidente de uma instituição bancária internacional, em viagem a Nova York, que é denunciado por assédio sexual pela camareira do hotel.

A produção dirigida por Abel Ferrara (4:44 - O Fim do Mundo) não poupa esforços em sublinhar o apetite sexual do personagem. Em uma reunião de trabalho, Devereaux oferece um cardápio de prostitutas para os executivos correlatos; ele volta para o hotel, onde tem companhia de mais prostitutas; participa de uma orgia organizada por amigos em que o prato principal são... prostitutas. E as cenas de sexo são de um realismo ímpar.

Fica difícil, neste primeiro momento, comprar a ideia de um personagem tão bidimensional. É tudo sobre sexo. Mas o filme avança – denúncia, prisão, reprimenda da mulher (Jacqueline Bisset, inspirada) – e Devereaux não sai do lugar (da cama).

Forçado pela esposa a confessar o ataque, ele nega a acusação com naturalidade. Mas, aos mais chegados, ele revela que não se arrepende de nada, usando do mesmo semblante pacífico. É nesse ponto que grita a tal “amoralidade” do personagem, que ganha verossimilhança. E o filme, profundidade.

Na “vida a real”, em 2011, o então presidente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Dominique Strauss-Kahn (DSK), foi acusado de assédio sexual por uma camareira de um hotel de Nova York, um escândalo amplamente divulgado na imprensa, que custou ao político a chance de disputar a presidência francesa. DSK chegou a ameaçar Abel Ferrara com um processo e, talvez por isso, todo material de divulgação do filme traz a ressalva de que, apesar de inspirado por um processo judicial famoso, Bem-Vindo a Nova York é uma história ficcional.

A semelhança entre as duas histórias é notória, claro – e fica irresistível para o espectador, em algum momento, não se perguntar se tudo não teria acontecido realmente assim. Mas a fantasia de Abel (e do cinema), ao preencher lacunas e fazer opções para (re)construir aquele momento, torna o filme maior do que o episódio – o que se sabe dele.

No fim, não importa que a realidade tenha sido desse ou de outro jeito. Importa que a imaginação do diretor deu conta direitinho de trazer um estudo instigante da psique humana através de um personagem muito bem construído – seja ele real ou fruto da imaginação de um excepcional realizador.