Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios

O amor e o intelecto

por Bruno Carmelo

A primeira imagem nos mostra o corpo nu de uma mulher. Como um animal, ela rasteja sobre a areia, encara a câmera, esconde-se. Esta mulher, que nós não tornaremos a ver, representa de certa forma a abordagem do filme: um olhar masculino, curioso e quase biológico, aos segredos do corpo e da alma feminina.

Em Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios, o diretor Beto Brant e o escritor Marçal Aquino, autor do livro homônimo, criam uma protagonista de grande complexidade: Lavínia, mulher sedutora, belíssima, ao mesmo tempo ingênua e dotada de uma psique inacessível. A exemplo de outras grandes personagens femininas do teatro, como a ambígua Blanche de Um Bonde Chamado Desejo ou a manipuladora Martha de Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, Lavínia monopoliza o universo do filme. A obsessão amorosa, sexual e imagética por esta mulher é o próprio tema da história.

Lavínia tem a sorte de ser interpretada por Camila Pitanga, que demonstra um surpreendente talento dramático. Tanto nos momentos em que ela se encontra feliz e sedutora, com seu amante Cauby (Gustavo Machado), quando nas cenas em que deixa-se conduzir de modo infantil pelo marido Ernani (Zécarlos Machado), Camila Pitanga compõe personagens distintos dentro desta mesma mulher, ora prostituta no Rio de Janeiro, ora adoradora da palavra divina no Pará. A atriz encarrega-se de modo exemplar da sedução, do mistério e da complexidade psicopatológica de Lavínia, que (como Blanche, como Martha), deve seu mistério às flutuações da sua personalidade.

Outra grande sorte de Lavínia é a de ser concebida e desenvolvida por Beto Brant, diretor que consegue evitar dois grandes perigos do "cinema de autor": ele cria uma narrativa fragmentada e trabalha com símbolos sem cair no hermetismo que afeta alguns filmes do dito novíssimo cinema brasileiro; ao mesmo tempo em que mostra uma direção segura e experiente sem se limitar à repetição de seus traços pessoais, como fazem muitos autores consagrados. Brant, junto do parceiro Renato Ciasca, atinge com Eu Receberias as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios esta zona confortável em que ainda se é jovem demais para ousar, e experiente demais para se perder em demonstrações pretensiosas.

A direção usa muito bem o olhar subjetivo fluido, com o steadycam (vide as belas cenas do circo, da Igreja), filma cenas de amor fortes, sem pudor nem fetichismo, e cria um belo painel de homens que orbitam em torno de Lavínia, com as atuações excelentes de Gustavo Machado e Zécarlos Machado, interpretando dois personagens muito diferentes, mas ambos apaixonados pela mesma mulher, enfeitiçados talvez pela própria incapacidade de compreendê-la. Essas lacunas (Lavínia viaja para onde? O que ocorre após a ruptura?) são igualmente escondidas do espectador, que pode assim imaginar e projetar seus próprios desejos em Lavínia.

Aliada ao belo roteiro, à direção segura e às ótimas atuações encontra-se a fotografia, belíssima em seu trabalho com a luz natural, sem medo de se perder na escuridão das ruas do Pará em plena madrugada. A fotografia trabalha o aspecto sensorial e carnal de grande importância a esta história, além de desenvolver de maneira gradativa e certa a noção de perigo que cerca esses personagens, ora por livrarem-se aos seus desejos sexuais com a mulher proibida, ora por atacarem a extração ilegal de madeira no Estado. O roteiro funde o público e o privado ao mergulhar com a mesma intensidade no sexo e na política, no amor e no militantismo. O olhar da câmera parece querer devorar, com o mesmo interesse, o corpo de Camila Pitanga, a bela luz do sol, a voracidade dos homens e as causas ambientais.

Foi interessante ver, no final da sessão, que alguns espectadores ficaram incomodados com as poesias messiânicas de Viktor (Gero Camilo), enquanto outros criticaram a presença do palhaço-justiceiro, e outros ainda não gostaram da parte em que se mostra, de maneira quase documental, a luta ecológica dos índios. O fato é que, sem medo do excesso nem da fragmentação, Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios corre o risco de agradar mais por um aspecto do que por outro. O público vai poder identificar aqui ou ali um momento que lhe parece destoante. Mas este é um raro filme que oferece ao mesmo tempo muito a sentir, muito a ver, e muito a pensar. Carnal e cerebral, intimista e militante, esta obra consegue apresentar com o mesmo furor o interesse pela cidade, pelas mulheres, pelas imagens e pelo amor.