Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Uma Noite de Crime

O direito à violência

por Bruno Carmelo

Este filme começa uma sequência impressionante de linchamentos, assassinatos e outras agressões cruéis vistas através de câmeras de segurança, ao som de uma doce música clássica (Laranja Mecânica vem à mente). Um letreiro explica que os Estados Unidos instauraram uma lei permitindo a todos os cidadãos que se “purifiquem” (do verbo purge, que constitui o título original), cometendo todos os crimes que quiserem em uma única data específica, determinada pelo governo. Por causa desta violência institucionalizada, o nível de ocorrências policiais baixou, e a sociedade vive em perfeita harmonia 364 dias do ano – exceto pela selvageria durante a Noite de Crime, claro.

Esta ideia, embora improvável, é riquíssima como motor narrativo e como discussão social. A lei fictícia sugere que o grande pecado dos americanos não está em suas pulsões assassinas, que fariam parte de todos os seres humanos (tese psicologicamente defensável), mas no fato de não torná-las concretas. Algumas teorias, aliás, sugerem que o cinema produz o mesmo efeito: o espectador de filmes de terror só gostaria de ver mortes espetaculares para simular um prazer que não poderia experimentar na vida real. Com esta nova lei, a economia e a sociedade são igualmente impactadas: já que os ricos podem pagar por equipamentos de proteção mais sofisticados, a Noite do Crime fica restrita à matança dos pobres pelos ricos, enquanto fortalece a indústria de armas. O roteiro usa dois preceitos muito caros aos americanos (o direito e a liberdade individuais) para expandir a lógica belicista: Se todos têm direito ao porte de armas, por que não ter o direito de usá-las à vontade?

Desde o início, a maioria dos espectadores já deve ter percebido que esta produção é uma sátira corrosiva e grotesca dos hábitos norte-americanos, especialmente a paranoia em torno da segurança. A família de protagonistas é o símbolo perfeito deste conservadorismo: trata-se de um homem de negócios que subiu na vida graças ao American Way of Life (Ethan Hawke, interpretando justamente um vendedor de sistemas de segurança), sua esposa, símbolo da dona de casa desesperada (Lena Headey) e duas crianças que funcionam como estereótipos ambulantes: um garoto inteligente, nerd e deslocado socialmente (porque tem ideias à esquerda) e uma adolescente em plena ebulição hormonal, que se veste como líder de torcida até dentro de casa.

A diversão em Uma Noite de Crime vem da possibilidade de expor a típica família americana à carnificina. Um incidente faz com que os personagens abriguem um homem desconhecido em sua casa (negro, pobre, sensato), que por acaso é perseguido por jovens fascistas (loiros, ricos, psicopatas). O encontro entre ambos traz tudo que se espera de um filme de terror, com corpos dilacerados e uma dezena de mortes, além de tudo que se espera de um suspense, com diversas pistas falsas e constante clima de tensão.

É uma pena que o roteiro recorra a alguns artifícios bastante preguiçosos, que incluem personagens esquecidos pela narrativa durante mais de 20 minutos (será que alguém realmente se esqueceria de um familiar em perigo no cômodo ao lado?), ou então as cenas de assassinato dos familiares, invariavelmente interrompidas por uma terceira pessoa, que surge de lugar algum e atira nas costas do agressor. A eletricidade na casa também acaba pelo simples prazer de ver estas pessoas perambulando no escuro, ou seja, para aumentar a dificuldade do jogo.

Apesar destes lugares comuns, e de algumas atuações fracas (é difícil saber se Lena Headey está triste, feliz, com medo ou com dor de barriga), Uma Noite de Crime consegue levar adiante a sua farsa com grande efeito, até atingir uma conclusão ousada, que dá um tapa na cara dos americanos médios – leia-se: os tradicionais, patriotas, que pregam a instauração da lei do mais forte. O final, de tão intenso é explícito, levou alguns espectadores às gargalhadas, mas é melhor assim: tanto os personagens quando os espectadores conseguiram se “purificar”, experimentar a catarse com o riso e a angústia diante da morte - ou da simulação da morte. Em tempos de excesso de violência pelo governo, pelos policiais e pelos cidadãos, além da paranoia de governos federais vigiados por agências americanas, uma leitura tragicômica da sociedade cai muito bem.