Jogo de poder
por Bruno CarmeloNa peça de teatro A Mais Forte, de August Strindberg, duas mulheres encontram-se em um café. As duas são apaixonadas pelo mesmo homem: uma é a esposa, e a outra, a amante. A primeira passa a peça inteira acusando a segunda, agredindo, humilhando. A segunda não diz uma palavra sequer. A pergunta lançada ao espectador é: Quem é a mais forte? Aquela que ataca, ou a outra que aguenta, estoicamente, a agressão? De certa maneira, esta também é a pergunta de Uma Relação Delicada, fascinante jogo de gato e rato entre uma diretora de cinema e seu ator.
No filme, Maud (Isabelle Huppert) é uma rica cineasta. Ela acaba de sofrer um derrame, ficando com a metade do corpo paralisada. Isso não impede que continue o projeto de um filme, e para isso convida para o papel principal Vilko (Kool Shen), ladrão assumido e orgulhoso por ter roubado diversas pessoas. Ela pede ajuda, e ele concorda. Ele pede dinheiro, ela concorda. Maud precisa do novo amigo para se levantar, para se vestir, para fazer o seu filme. Vilko precisa da nova amiga para ganhar mais dinheiro e continuar em destaque na mídia.
O título original desta produção (o mais apropriado “Abuso de vulnerável”) levou muitas pessoas a pensar que esta seria uma história unilateral sobre um perigoso manipulador e uma pobre vítima. Alguns críticos inclusive descartaram a história como sendo implausível: Como uma mulher inteligente se deixaria ludibriar por um tipo assumidamente desonesto? Pois este pensamento racional não se aplica a personagens guiados acima de tudo pelas emoções. De certa maneira, Maud não quer ser ressarcida, porque isso terminaria a relação de dependência entre eles, terminando também a amizade. Vilko, por sua vez, tem interesse em manter Maud viva e feliz, para que continue assinando os seus cheques. Assim, inesperadamente, eles se ajudam. Ora um tenta tomar o controle da relação, ora o outro assume o comando, em um precário e eletrizante equilíbrio de forças.
Uma Relação Delicada lembra um tango amargurado, ou talvez a sucessão de golpes de uma luta de boxe. Isabelle Huppert interpreta Maud com leveza e senso de humor quanto ao seu problema físico, mas condescendente com a extorsão de Vilko. Mesmo no belíssimo prólogo final (quando Huppert está magnificamente assustadora), ela repete que estava consciente de todos os cheques que assinou, e que levaram à sua ruína. Kool Shen também carrega na ambiguidade de seu personagem, parecendo às vezes ter um carinho real e profundo pela diretora. Apenas os dois personagens se desenvolvem na trama, e o roteiro ignora qualquer conflito alheio aos dois.
Quando nos lembramos de que esta é uma história real, vivida pela própria diretora, o projeto torna-se ainda mais interessante. Catherine Breillat não faz um filme para explicar o seu lado da história e provar sua inocência, pelo contrário: ela insiste em repartir as responsabilidades, sugerindo que não há culpados nem inocentes na trama. Como de costume, a diretora não tem a intenção de fazer um filme belo ou agradável. Os planos são simples, a montagem é ríspida, o ritmo é linear e monótono, a paleta de cores é fria (brancos, pretos e beges dominam as imagens). Não há música, simbologias ou quaisquer traços de lirismo. Esta é uma obra dura, sempre a um passo de escapar ao realismo e adentrar o terreno do absurdo, da fábula. Mas, no caso, uma fábula desagradável, e curiosamente desprovida de moral.