Epopeia íntima
por Bruno CarmeloMichael Kohlhaas é um personagem literário criado há mais de 200 anos por Heinrich von Kleist, que por sua vez se inspirou na história de um homem real. Esta trama sobre um vendedor de cavalos que luta contra um poderoso barão já foi adaptada ao cinema pelo menos três vezes antes de Michael Kohlhaas – Justiça e Honra. O que o cineasta Arnaud des Pallières, em pleno século XXI, poderia trazer de novo?
Tematicamente, temos uma história de bravura comum: quando seus cavalos são roubados, Kohlhaas reúne um grupo de camponeses dispostos a se sacrificar na luta contra os poderosos. O que era um pequeno incidente transforma-se em uma guerra pessoal. A luta de classes em uma época de impermeabilidade social é um tema recorrente na literatura romântica povoada por heróis incorruptíveis, nobres malvados e donzelas em perigo. Neste sentido, o novo filme não inova, nem tenta adaptar a trama para a moral dos nossos dias. O maniqueísmo e o tom de fábula são mantidos intactos.
A mudança está mesmo na estética. O cineasta evita o ritmo consagrado por produções hollywoodianas, como Coração Valente. Ao invés de ostentar centenas de figurantes em grandes cenas de batalha, Pallières reduz as suas imagens a planos fechados, com uma dúzia de homens no máximo, dando grande atenção aos cômodos fechados e às planícies selvagens. Nada de cenários grandiosos, efeitos especiais, trilha sonora estrondosa: aqui as locações são mínimas, a trilha é discreta e rara, o ritmo é voluntariamente lento. Enquanto isso, a fotografia contrastada mergulha os personagens na escuridão completa ou na claridade absoluta – uma provável metáfora dos extremos sociais do século XVI.
O sentimentalismo desaparece. Existem crianças e donzelas em perigo, mas Kohlhaas nunca chora por elas, nem se sacrifica pela vida alheia. Em sua sede de vingança, ele mata impiedosamente diversos homens, e chega a ser questionado por um padre (Denis Lavant, excelente) sobre a sua noção deturpada de justiça. Mads Mikkelsen, ator muito talentoso, opta por uma interpretação glacial, sem choros, risos ou raiva, sustentando um olhar inabalável rumo o horizonte, como uma estátua do herói sobre o seu cavalo. O dinamarquês não parece à vontade com os difíceis diálogos em francês, falhando na tentativa de trazer humanismo ao pomposo linguajar antigo. Pelo menos, os atores coadjuvantes são ótimos, com destaque para o experiente Bruno Ganz e a jovem Mélusine Mayance.
Por fim, Michael Kohlhaas – Justiça e Honra é uma produção bela e competente, embora não muito empolgante. Esperava-se do diretor do subversivo Parc uma apropriação mais autoral do conteúdo, com referências explícitas aos tempos presentes. O tema pode ser atemporal, mas a batalha legal comandada por Kohlhaas torna-se anacrônica no cinema contemporâneo. Além disso, a história é voluntariamente desprovida de empatia: o mundo nunca é visto pelos olhos do protagonista, que é mantido a uma distância razoável da câmera e dos outros personagens. Mesmo assim, por ressignificar os códigos visuais do filme de cavalaria de maneira íntima, a produção apresenta o seu valor e a sua singularidade.