A fábrica de brinquedos
por Bruno CarmeloA história por trás de A Espuma dos Dias é simplíssima: um homem e uma mulher se apaixonam, mas a relação é abalada quando ela contrai uma grave doença. Esta sinopse, na verdade, importa pouco, já que a atração do filme não são os seus personagens humanos, e sim os aparelhos, apetrechos, máquinas e cacarecos criados pelo diretor Michel Gondry. São dezenas de despertadores parecidos com baratas, nuvens que voam, pernas que esticam, mesas com ondas, pianos que produzem coquetéis, paredes que se arredondam ao som de Duke Ellington, flores crescendo em pulmões, sapatos com vida própria, arco-íris acionados por botões, corridas de carro no interior de igrejas, pessoas morando dentro de geladeiras etc. etc. etc.
Se as criações lúdicas têm o mérito inegável da criatividade, elas carregam o problema de não servirem à narrativa. Elas são divertidas como ideia, ou seja, são instigantes em si mesmas: é curioso ver um piano produzir coquetéis, e um sapato sair dos pés de seu dono para cheirar os convidados de uma festa, como um cachorro. Mas a narrativa nunca evolui graças a essas invenções. Elas não têm causas, nem trazem consequências à trama, comportando-se como brinquedos abarrotados em uma estante, esperando para ser usados e devolvidos aos seus lugares.
A Espuma dos Dias desperta uma sensação de aleatoriedade: tudo pode acontecer, tanto à história quanto aos personagens, sem que isso encaminhe o filme a algum lugar preciso. Uma nave metálica interrompe um casamento, mas poderia ser um carro, uma cama voadora, um mamute, o que quer que seja. Por isso, é com um irônico alívio que Chloé (Audrey Tautou) descobre sua doença. Com um verdadeiro conflito introduzido no caos deste mundo maravilhoso, a história começa a se organizar. As mágicas passam a servir a um propósito: Colin (Romain Duris) passa a trabalhar para pagar as contas do hospital, o amigo Nicolas (Omar Sy) dedica-se mais à saúde de Chloé.
Entenda-se: a história não precisa ser narrativa e linear para despertar interesse. Ela pode criar mundos fantásticos e obedecer a uma lógica própria, contanto que os símbolos criados sirvam para fazer evoluir a trama, caracterizar os personagens ou ainda criar o tom da história. Gondry parece mais preocupado em se certificar que todas as cenas, do início ao fim, sejam diferentes do comum. Ninguém pode simplesmente sentar à mesa e comer seu almoço, é preciso que o prato corra sozinho, que a comida crie vida e assim por diante. No entanto, com a obrigação de embutir surrealismo em cada imagem, nenhuma se distingue das outras, nenhuma salta aos olhos. O filme acaba sendo tão monótono quanto os filmes de ação com explosões do começo ao fim.
A Espuma dos Dias tem méritos, obviamente, que merecem ser citados. O principal deles é o fato de Gondry jamais abusar da estética, deixando suas bugigangas constituírem sozinhas toda a estranheza do filme. A luz, a edição, os enquadramentos são simples e tradicionais, e a cidade de Paris é mostrada em seus ângulos mais cinzentos – a câmera prefere focar num campo de obras ao invés dos pontos turísticos, por exemplo. Os atores também se entregam totalmente ao projeto, tentando extrair o máximo de humanismo de personagens pouco mais profundos do que fantoches.
De fato, percebe-se em toda a parte técnica (som, luz, montagem, direção de arte) um comprometimento com a visão do diretor. O filme é coeso, e explora seu ponto de vista singular até o fim, sem tentar agradar a todos os públicos. A Espuma dos Dias pode ser uma daquelas produções amadas ou detestadas, justamente por ser tão excessiva em suas escolhas. Melhor assim. Para quem enxergar nessas quinquilharias uma poesia analógica, ou uma homenagem ao imaginário do escritor Boris Vian, o filme parecerá muito satisfatório. Mas para quem espera alguma simbologia ou discurso deste universo, resta a impressão de um longo e cansativo passeio em uma fábrica de brinquedos.