Soldado de Deus
por Francisco RussoNo princípio, não havia nada. A história de Noé começa no gênesis, bem antes da famosa reunião dos animais antes do dilúvio divino, de forma a associá-lo ao pecado original. É no furto da maçã proibida que começa a realidade sombria, onde os descendentes de Caim resultaram numa civilização violenta e egoísta. Para “limpar” a Terra, veio a enorme enxurrada que cobriu os continentes. Um novo início, uma purificação, que traz consigo a instigante pergunta: há espaço para a humanidade nela?
Mais do que simplesmente levar a história bíblica às telonas, o diretor Darren Aronofsky está interessado é em discutir a posição do ser humano diante deste “juízo final”, sob os mais diversos aspectos. O mais explícito é o lado da fé que beira o fanatismo, representado pelo próprio personagem título. A crença inabalável de Noé em seguir os desígnios de Deus faz com que não apenas construa a famosa arca, mas também deixe de lado centenas – milhares? – de vidas humanas suplicando por uma vaga na embarcação, trazendo ao personagem uma dubiedade moral que pode render uma boa polêmica. Mais intenso ainda é o conflito vivido por Noé após o dilúvio, numa subtrama surpreendente que desperta vários questionamentos sobre o próprio ser humano.
Para construir esta realidade, Aronofsky foi fundo nas pesquisas e resgatou trechos pouco conhecidos vindos das mais diversas religiões. É notável o empenho na reconstituição de certas passagens, assim como o esforço feito para justificar esta realidade de fundo fantástico. Questões básicas sobre a construção da arca e como os animais chegaram à embarcação, e lá permaneceram em harmonia durante o dilúvio, são explicadas no longa-metragem, por mais que existam algumas perguntas sem resposta aqui e ali. Da mesma forma, o diretor teve o cuidado necessário em apresentar animais que não necessariamente são idênticos aos que conhecemos, mas sim vindos de supostas etapas anteriores da evolução. Afinal de contas, o mundo de Noé é diferente do atual e, como tal, apresenta peculiaridades muito próprias.
Entretanto, por mais que haja um nítido apuro na criação desta realidade, Aronofsky derrapa de leve justamente num de seus elementos cruciais: os guardiões. Seres gigantes que servem de ligação entre o paraíso perdido e a vida atual na Terra, eles são conceitualmente interessantes mas pecam na roupagem em tom de fantasia, que remetem a filmes das séries Harry Potter e O Senhor dos Anéis. Esta opção talvez seja por questões mercadológicas, de forma a atrair um público maior, mas acaba também agindo contra o filme, já que torna os personagens – e a história em si – ainda mais fantasiosos. E este lado é, no fim das contas, o que menos importa para o filme como um todo.
Em relação às atuações, é importante destacar o trabalho de Russell Crowe. Por mais que em certos momentos seu personagem se assemelhe aos de épicos por ele estrelados anteriormente, há em seu Noé uma variedade de emoções que o torna, acima de tudo, humano. Jennifer Connelly e Emma Watson também têm bons momentos, especialmente na metade final, quando suas personagens são mais exigidas emocionalmente. A qualidade na fotografia, digital, e a edição caprichada em momentos belos mas supérfluos, como a reapresentação do gênesis, também merecem destaque.
No fim das contas, o ponto crucial de Noé é a discussão implícita sobre a servidão a Deus e a culpa do homem na realidade que nos rodeia, usando para tanto a figura do Deus punidor. Não espere discussões inflamadas sobre o assunto, mas a construção de situações que podem (e devem) servir como comparação aos dias atuais. Mais do que um mero blockbuster interessado no espetáculo, Noé é um filme que tem o que dizer a um público que queira discutir. Assista de mente aberta, sem se ater a detalhes religiosos, já que não é este o verdadeiro objetivo da história. Noé olha para o ser humano, com suas falhas e virtudes, demonstrando uma crença talvez infundada que pode ser representada pela frase mais importante do longa-metragem: “o mal está em todos nós”. Sob os mais diversos aspectos.