Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Nota de Rodapé

O sagrado e o profano

por Bruno Carmelo

Nota de Rodapé é uma comédia sombria, que se dedica a dissecar alguns dos elementos mais importantes da cultura israelense e da tradição judaica, como a família e a importância dos estúdios talmúdicos. A história parte de uma farsa simples: tanto o pai quanto o filho são intelectuais conhecidos, e um deles recebe um prêmio cobiçado no lugar do outro, por engano. Está lançada a guerra entre os dois, nas esferas pública e privada.

O diretor Joseph Cedar já havia mostrado em Beaufort, que também estreou no Brasil neste ano, um prazer em subverter os gêneros do cinema. Naquele caso, o filme de guerra ganhava ares de drama contemplativo. Neste caso, a comédia pastelão torna-se mais complexa e às vezes adquire o tom de um suspense. De qualquer modo, Cedar gosta de instalar o desconforto, trazendo ruídos estridentes, cores frias, cenas de humilhação e injustiça.

O leitor encontra-se em uma posição delicada: ele não é convidado a torcer por ninguém. Não há vítima nem culpado, tampouco existe um protagonista definido. Os dois homens são personagens igualmente detestáveis, assim como todos os coadjuvantes. O pai é um idoso rabugento, que nutre um prazer cruel em sabotar o filho. Este, por sua vez, é um jovem arrogante que ajuda o pai apenas por culpa, sem de fato acreditar nas capacidades intelectuais dele.

O grande mérito do roteiro de Nota de Rodapé, premiado em Cannes, é transformar todas as relações em jogo em questões morais. O erro na premiação marca o início de uma série impensável de complicações entre pai e filho, patrão e empregado, entrevistado e entrevistador, diretor de universidade e professor, organizador de evento e homenageado. Não existe real compaixão por ninguém, as relações se estabelecem de modo automático, interessado e inevitável. Este é um filme desprovido de bons sentimentos. Seu mundo niilista insiste na pequenez do ser humano, em sua incapacidade a transformar a mecânica social.

Muitos críticos apontaram uma relação entre Cedar e os irmãos Coen, algo justificável não apenas pelo tema religioso constante, mas pelo prazer do absurdo. Nota de Rodapé lembra o excepcional Um Homem Sério, dos Coen, que também abordava um personagem banal, submerso em conflitos morais insolúveis. Algumas cenas desta produção israelense evocam a hipocrisia do culto à imagem e das premiações auto congratulatórias da alta sociedade. São hilários os preparativos para a entrega do prêmio, quando o pai é tratado como uma criança pelos organizadores, e a discussão com um filho em uma sala minúscula da universidade.

Ao mesmo tempo, os detratores desta produção afirmaram que o contexto do filme seria específico demais à cultura judaica, o que não me parece verdadeiro. De fato, talvez os espectadores pouco familiarizados com o judaísmo não conheçam os termos da Torá citados na trama, mas os exemplos da cultura erudita fornecidos nesta história poderiam encontrar uma equivalência na Bíblia e no meio universitário brasileiro.

Alguns elementos deste filme ambicioso podem incomodar, como o uso ocasional de animação (os mapas com os rostos de pai e filho) e o desfecho paranoico-obsessivo. Diante de um mundo tão desprezível, não é uma experiência nada agradável se identificar com nenhum dos personagens. Mesmo assim, para quem estiver disposto a adotar um distanciamento, Nota de Rodapé é uma comédia excepcionalmente inteligente, que pode representar uma experiência muito mais gratificante do que as demais comédias em cartaz.