Críticas AdoroCinema
5,0
Obra-prima
Cidadão Boilesen

Um documento moderno sobre um tema antigo

por Roberto Cunha

Você gosta de documentários? Não? Então prepare-se porque Cidadão Boilesen pode mudar seu ponto de vista. Com um título notoriamente inspirado no clássico Cidadão Kane, Chaim Litewski produziu ao longo de 16 anos um documento audiovisual de qualidade ímpar em termos de pesquisa, impacto e apuro técnico. Em sua abertura, com uma levada diferente, o filme revela o Curriculum Vitae de Boilesen (batido a máquina) e vai tecendo a sua história através dos depoimentos de vítimas de tortura, diplomatas, militantes de organizações de esquerda, políticos, militares da reserva, religiosos e até ex presidentes. Litewski costurou de maneira sublime uma história que tinha tudo para ser chata, principalmente, pela quantidade de material visual estático (fotos em preto & branco), mas não é o que se vê na tela.

A pesquisa minuciosa investigou boletins de escola e estabeleceu conexões de seu comportamento quando jovem e depois de adulto. E é impressionante ver como um homem de notável capacidade de liderança, criador de mecanismos de auxílio ao novo trabalhador como o CIEE (Centro de Integração Empresa-Escola) sucumbiu ao "lado escuro" numa clara demonstração de que – de fato – o poder corrompe. O longa não perde nunca a verve da denúncia, impondo em alguns momentos um ritmo até frenético com edição competente embalada por boa trilha sonora com direito até a regravação do clássico "Eu Te Amo Meu Brasil" de Don & Ravel. O documentário desnuda de maneira contundente o dinamarquês mais famoso do Brasil (condecorado pelo rei de seu país), revelando um homem frio, calculista, capaz de participar de sessões de tortura e até importar instrumentos para este fim como a máquina que ficou conhecida como "Pianola Boilesen".

Com narrações e imagens originais, o espectador é a todo instante inserido no contexto da época, podendo, até certo ponto, ter uma dimensão aproximada de quem viveu aqueles momentos. depoimentos e documentos comprovam a conexão estabelecida entre os caminhões da Ultragaz e as prisões políticas. Assim como as ligações dele com o delegado Fleury e a guinada do Esquadrão da Morte, que passou a perseguir militantes políticos, revelam os bastidores do plano maquinado em 1969 para arrecadar fundos para financiar a OBAN (Operação Bandeirante). Criada para combater o terrorismo, misturando policiais civis e militares, acabou virando uma espécie de pedra filosofal do famigerado DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna).

E não por acaso, você verá gente como o cineasta Roberto Faria e Celso Amorim, na época na Embrafilme, falando dos problemas de Pra Frente Brasil, e o ex ministro Delfim Netto revelando empresas famosas da FIESP que cederam a pressão "mafiosa" de Boilesen que, segundo um embaixador, não era agente mas falava com a CIA. E até o ex presidente Fernando Henrique Cardoso não poupa saliva para falar do "golpe do golpe" em 64 e afirmar "um a menos" sobre o assassinato de Boilesen em 1971 com 19 tiros, a maioria, na cabeça. Assim, Cidadão Boilesen é acima de tudo um documento moderno sobre um tema antigo. Sem sombra de dúvida um filme que ajuda a entender determinados mecanismos do poder e suas ligações históricas com um passado não tão distante do Brasil de João Goulart, do ódio ao comunismo, dos militantes de esquerda e de um exército no poder. E se o Kane de Welles era ficção inspirada na realidade, o Boilesen de Litewski é realidade baseada em não ficção. Por mais que seu filho (no doc mesmo) negue tudo e ainda pergunte "por que".

Obrigatório para quem busca o saber. Imperdível para quem curte documentário e cinema.