Críticas AdoroCinema
2,5
Regular
O Homem que Matou Dom Quixote

Variações de um personagem

por Bruno Carmelo

A chegada desta comédia ao cinema tem sido comemorada efusivamente por críticos e cinéfilos, mesmo antes de assistirem ao filme. Depois de atravessar todos os tipos de problemas de produção – abandono do elenco, processo dos investidores, acidentes nas gravações, doença do diretor – o projeto foi finalmente concluído por Terry Gilliam, que inicia a obra brincando com suas próprias dificuldades. “Agora, após 25 anos de preparação...”, afirma o letreiro inicial. Não é difícil antever que The Man Who Killed Don Quixote será muito mais conhecido por seus imbróglios nos bastidores do que pelas imagens em tela.

O resultado é uma narrativa dispersa, longa, claramente alterada diversas vezes. Existe mais de um filme-dentro-do-filme nesta aventura metalinguística com maior preocupação em confundir do que esclarecer. A fantasia, para Gilliam, sempre foi associada à fragmentação e ao absurdo. Neste caso, ele vai longe. A premissa parte de Toby (Adam Driver), um jovem diretor de cinema arrogante encarregado de fazer uma superprodução sobre Dom Quixote de la Mancha. Mas as gravações não andam bem, então ele se relembra que já fez um filme sobre o mesmo tema durante sua juventude – é curioso que ele tenha se esquecido, aliás – e parte em busca dos atores da época. O senhor idoso (Jonathan Pryce) que interpretava o protagonista enlouqueceu, e acredita realmente ser Dom Quixote. Imediatamente, o cavaleiro toma Toby por Sancho Pança.

Esta é apenas a primeira parte de uma trama que envolve mocinhas em perigo, magnatas russos, um cigano traiçoeiro, uma comunidade muçulmana e muitos outros elementos. O conjunto é embalado num humor ingênuo com predileção pelas trapalhadas físicas – existe uma dúzia de cenas de personagens caindo do cavalo, caindo de um moinho, caindo num castelo, caindo de um balcão, caindo da cama etc. As escolhas estéticas de Gilliam permanecem puramente funcionais, com seus planos de conjunto e eventuais closes nos rostos de quem fala. O diretor se preocupa muito mais com direção de arte, figurinos e adereços do que com a composição de enquadramentos ou a duração dos planos. Isso é comprovado pela montagem confusa que jamais encontra coerência na jornada rocambolesca.

O elenco é igualmente negligenciado. Jonathan Pryce, o melhor em cena, se diverte no papel do senhor cuja insanidade se confunde com coragem. Adam Driver está desigual, ora aplicando muito bem sua sensibilidade contemporânea ao ritmo dos diálogos, ora parecendo perdido quanto às intenções do diretor – vide a longa e estranha cena sobre o óleo ou sobre “viver e morrer”. As pobres mulheres são relegadas às posições de santas ou prostitutas, sempre vistas pelo prisma desejante masculino. Olga Kurylenko, pela enésima vez, é explorada por sua beleza, em situações um tanto constrangedoras.

The Man Who Killed Don Quixote possui momentos divertidos, em especial aqueles que contrapõem as diferenças sociais entre os séculos XVII e XXI. Sua história não tem o menor sentido, mas serve para utilizar Dom Quixote como referência cultural que, há ainda hoje, povoa o imaginário coletivo. Gilliam reteve sobretudo a noção de loucura – o fato de lutar contra moinhos, procurar uma Dulcineia, contar com a ajuda de Sancho – que lhe serve de motor à fantasia tresloucada. Enquanto o cavaleiro representa a abertura à magia, seu escudeiro ilustra o ceticismo contemporâneo. No choque entre os dois transparecem algumas ideias boas, outras tantas desperdiçadas, e mais algumas que talvez fizessem mais sentido antigamente, no início desta longa jornada de criação, e que depois se perderam no caminho.

Filme visto no 71º Festival Internacional de Cannes, em maio de 2018.