Ninguém sabe, ninguém viu
por Pablo MiyazawaEm um 2020 apinhado de reboots, remakes e continuações tardias, um clima de “vale a pena ver de novo” permeia a nova versão de O Homem Invisível. Sim, trata-se do mesmo título do filme de 1933, um dos mais icônicos do elenco de “Monstros da Universal˜, que por sua vez foi inspirado no conto clássico do emblemático autor britânico H.G. Wells.
Que fique claro que o novo filme não traz absolutamente nenhum vínculo com o passado a não ser pelo título em si, o que pode até indignar cinéfilos mais tradicionalistas. Essa sensação é aliviada se pensarmos que a ideia de um homem se tornar invisível é boa o bastante para servir como uma tela em branco para qualquer tipo de trama. E para não dizer que a versão atual não faz menção ao clássico, há uma breve cena em que vislumbramos uma pessoa envolta em bandagens, algo semelhante a como o “homem invisível” costuma ser retratado (spoiler: é apenas um “easter egg” para agradar os atentos, e nada mais).
O grande mérito deste O Homem Invisível é ser o mais moderno possível, não apenas no quesito científico (já presente na trama original), como também ao dar holofote a dramas aterrorizantes do cotidiano raramente abordados no gênero. Para começar, é a primeira vez em que o “monstro” propriamente dito não é o protagonista da história. Elisabeth Moss faz Cecilia Kass, uma mulher oprimida por um marido controlador em um relacionamento abusivo. Quando ele morre misteriosamente, ela pensa que enfim está livre para viver a vida. Só que tudo indica que o crápula ainda está vivo e aprontando das suas… e apenas Cecilia “enxerga” isso.
Obviamente, ninguém acredita nos clamores de Cecilia (e às vezes nem mesmo o público): estaria ela lentamente enlouquecendo? E é de sua metade em diante que O Homem Invisível tira o disfarce de “típico filminho de medo” e se torna um incômodo comentário sobre abusos, mais especificamente o tão alardeado gaslighting. E este é um papel que a obra desempenha notavelmente bem, muito graças à atuação engajada e à flor da pele de Elisabeth Moss. Torturada da primeira à última cena, jamais vemos sua Cecilia relaxar ou baixar a guarda -- talvez somente nos minutos finais, quando o filme se afasta de seus próprios trilhos e estabelece um plot twist que pode soar tão satisfatório quanto absurdo.
É de se esperar que os clichês básicos de suspense e terror existam e sejam abundantes. Nesse caso, diz muito o fato de O Homem Invisível ter sido escrito e dirigido por Leigh Whannell, cocriador e roteirista da franquia Jogos Mortais. A tensão é quase insuportável, a violência é explícita e o sangue jorra sem pudores, satisfazendo suficientemente os fãs de gore, ainda que a condução de Whannell não seja lá muito sutil ou inventiva. Ainda assim, é de se aplaudir sua coragem de se desviar das vias tradicionais e subverter um gênero tão conservador, favorecendo a discussão de uma problemática pungente e atual.
Porque se O Homem Invisível tem um grande mérito, ainda que de maneira irregular, é o de provocar um necessário debate sobre as muitas formas de violência normalizada da vida contemporânea -- principalmente aquelas que nos são invisíveis aos olhos. Se o filme aflige e incomoda, é porque traz verdades duras que preferiríamos não ver. No fim das contas, não é só entretenimento.