Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Megalópolis

Na sinfonia de Francis Ford Coppola, os excessos trazem vida ao passado e a futuro

por Aline Pereira

A história de Megalópolis começa décadas antes do lançamento do filme e lendo sobre esta trajetória após assisti-lo, um trecho em especial me chamou a atenção: em 2003, o lendário cineasta Francis Ford Coppola pediu que o compositor Osvaldo Golijov criasse uma sinfonia para seu futuro filme ainda inexistentes. A palavra “sinfonia” clicou na minha mente porque descreveu a sensação que tive durante a sessão. Com extravagância no visual, nas ambições, nos temas abordados e nas atuações, a utopia (utopia?) do diretor de O Poderoso Chefão parece mesmo um grande show – de excessos, tudo bem, mas cheio de vida, magnetismo e originalidade.

A estrela de Megalópolis é um teatral Adam Driver (Ferrari) no papel de Cesar Catilina, urbanista idealista que tem grandes projetos para a cidade de Nova Roma, cenário em que Coppola faz uma releitura futurista do império romano, relacionando a sociedade antiga às estruturas modernas dos Estados Unidos. O grande rival de Cesar é o ganancioso prefeito Franklin Cicero (Giancarlo Esposito, de Better Call Saul) e o conflito entre eles se agrava quando o protagonista se envolve com a filha de Cicero, Julia (Nathalie Emmanuel, de Game of Thrones), que também acaba mergulhando em um dilema entre o amor por Cesar e a lealdade pela família. “Lealdade”, aliás, é a palavra que o próprio Coppola escolheu para definir o ponto central desta obra.

Cercando os protagonistas, há um elenco de coadjuvantes de destaque liderado por Aubrey Plaza (The White Lotus) no papel de uma jornalista femme fatale que foi o primeiro ponto que me fez torcer um pouco o nariz. Ainda que a personalidade da atriz seja hipnotizante, a representação da personagem e a ideia que ela simboliza em relação à presença social do jornalismo sintetiza um pouco do que considero o grande deslize de Megalópolis: parece uma ideia de futuro concebida há muito tempo atrás e lançada sem muita revisão, sem considerar mudanças próximas ao contexto em que o filme chegou aos cinemas.

Tudo é muito na fábula de Francis Ford Coppola

“Quando pulamos para o desconhecido, provamos que somos verdadeiramente livres”, diz uma das passagens de Megalópolis que certamente é uma declaração de seu diretor. Ao longo da notável carreira e durante a divulgação do filme de 2024, Coppola falou diversas vezes sobre a importância de se assumir riscos para contar boas histórias e sua produção independente de 120 milhões de dólares coloca em tela muito do que ele quis dizer com isso e do que o torna um cineasta patrimônio de sua arte.

Na estreia no Festival de Cannes 2024, o filme saiu com reações polarizadas. Bem, em partes, isso já faz parte da mítica do evento, mas depois de assistir e sair muito mais contente do que achei que sairia com base nas expectativas geradas por algumas leituras aqui e ali, penso que talvez a linguagem e não a “moral da história” é que tenha desagradado mais. Tudo é muito em Megalópolis. Tudo o que aparece vem em doses cavalares e talvez seja necessária alguma disposição para abraçar o exagero. Eu, particularmente, penso que vale a pena e que este tipo de surpresa sempre torna a experiência no cinema mais marcante.

O entretenimento expansivo de Megalópolis abre as portas para as discussões mais profundas que Coppola quer levantar – e elas são muitas. Seus personagens representam estruturas de poder, dinâmicas sociais de corrupção, desigualdades e personificam ideias que formam os contrapontos entre o pensamento no futuro e as amarras do passado. Fica um convite, em diversos momentos, à reflexão sobre quais são as ideias que nos separam da proposta otimista e da fé na humanidade que o diretor tem.

Em um dos trechos, por exemplo, vemos um leilão em que homens com placas formadas por QR Codes disputam uma jovem pura e virgem. Uma apresentação visual da hipocrisia e da resistência de comportamentos que aparece também nas instalações gigantes, nos eventos suntuosos e nas aparições de figuras políticas que são tão esdrúxulas e caricatas quanto facilmente identificáveis na vida real. Este embate traz uma ideia sobre as barreiras que nos separam de um “futuro melhor” e são pertinentes à época em que o filme chega ao público.

Tempo é personagem vivo em Megalópolis

Em certo momento da trama, há também a pontuação – bastante pessoal de Coppola novamente – de que “artistas controlam o tempo” e essa ideia é parte central da jornada de Cesar Catilina. O controle do tempo surge em uma atmosfera fantástica com relógios gigantes, cordas e objetos flutuantes, mas passada a extravagância, fica uma boa conversa sobre legado, imortalidade e um vai-e-volta entre otimismo e pessimismo.

Como artista da construção da cidade, o protagonista interpretado por Adam Driver traz a angústia de quem acredita que há meios de ir além, mas que acaba barrado por convenções em que não vê sentido e nas contradições econômicas e políticas: o sistema não é feito para ajudar (a maioria das) pessoas. Com isso, Megalópolis questiona o quanto a própria civilização é responsável por sua própria ruína e, daí, vem o questionamento mais interessante: este é o único jeito de viver?

Ainda no quesito tempo, é possível que Megalópolis, como obra de ficção, também seja uma “vítima” de sua própria época. Talvez este não seja o tipo de filme que pede uma opinião definitiva no minuto em que acaba: são tantas as propostas feitas pela história (às vezes demais porque se perdem pelo caminho) que fui até o fim com uma certa de sensação de que, enquanto estava olhando para uma dessas questões, outras estavam correndo em paralelo – e algumas foram ficando pelo caminho.

De fato, Francis Ford Coppola assumiu seus riscos criativos para lançar uma obra que esteve guardada durante tanto tempo e trouxe aos cinemas um filme que tem, nas próprias inconsistências, as principais características de ser uma história viva.