Com Marjorie Estiano e Alexandre Netro, Precisamos Falar expõe o pior da classe média alta carioca
por Nathalia JesusProduções como The White Lotus (2021), Succession (2018) ou Triângulo da Tristeza (2022) não falharam em retratar um universo de ricos sendo “engolidos”, sejam eles mesmos os responsáveis pela própria desgraça ou não; durem as adversidades alguns episódios ou breves minutos até que consigam sair pela tangente; com desfechos satisfatórios ou os que parecem injustos — esses, por vezes, são bem realistas.
Em diferentes ângulos, cada uma dessas obras, de alguma forma, acaba gerando certa angústia de classe, afinal, o quanto de impunidade ainda cabe na cota de bênçãos dessas pessoas? Precisamos Falar, entre tantas outras questões, nos mostra que essa própria classe é quem decide os limites de seus privilégios.
Com roteiro de Sérgio Goldenberg, nome envolvido em produções como Onde Nascem os Fortes e O Canto da Sereia, o filme é inspirado no livro O Jantar, do escritor holandês Herman Koch, e escancara dilemas morais por meio de um núcleo de personagens que, a princípio, te faz procurar pequenos sinais de decência.
A história começa com uma gravação captada pela câmera de um celular: três meninos, Michel (Thiago Voltolini), Rick (Guilherme Cabral) e Jefferson (Cauê Campos), aparecem perto de um caixa eletrônico, onde dorme uma mulher em situação de rua. Um deles começa a ofendê-la, jogando lixo nela e, em seguida, explode uma bomba no local. Os rapazes fogem enquanto tudo vai aos ares e a mulher morre. A imagem é registrada pelas câmeras de segurança e se torna viral na televisão e nos jornais.
Os pais dos meninos são Sandra (Marjorie Estiano) e Paulo (Alexandre Nero), e Celso (Emílio de Mello) e Anna (Hermila Guedes), dois casais de classe média alta que, claramente, não demonstram boa vontade em conviver juntos, apesar de serem da mesma família. Quando identificam os rapazes nos vídeos exibidos na televisão — embora ninguém, além deles, o tenha feito —, eles iniciam um debate para decidir se farão algo sobre isso ou manterão em segredo para não prejudicar os garotos.
E de quem é a culpa?
O filme constrói uma atmosfera de tensão e suspense que lembra remotamente a edição de Os Outros. A dinâmica dos pais, com ideias trôpegas sobre como salvar seus filhos de um destino traçado por suas próprias atitudes erradas, também passa um pouco da vibe da série da Globoplay. No entanto, em Precisamos Falar, tem uma parte do núcleo que não está necessariamente tentando justificar os motivos de seus atos — não se escoram em traumas, nem em experiências que os levaram até ali. As coisas são como são e, se assim aconteceram, é porque deveriam ter acontecido mesmo.
Essa linha de pensamento é defendida, principalmente, pela família de Michel, o responsável por explodir a bomba. Eles são — com muito orgulho — do tipo “politicamente incorreto” e isso é enfatizado o tempo todo no filme, desde a decoração da casa com itens que evidenciam a adoração deles por armas e slogans como “direitos humanos para humanos direitos”, até os esforços contínuos em emitir comentários agressivos contra tudo o que consideram progressista ou “mi mi mi”. Soa caricato, mas pessoas assim existem mesmo e muitas falam exatamente desse jeito.
O contraponto para tais narrativas é a família dos irmãos Rick e Jefferson. O primeiro é um adolescente branco e de caráter escorregadio, enquanto o segundo é um rapaz negro, nordestino, adotado e consciente da estrutura em que vive. Os pais deles, Celso e Anna, defendem uma postura politicamente correta — literalmente, já que o patriarca está concorrendo às eleições como governador —, fazendo com que acreditemos que existe um núcleo bom e ruim, um lado moral e o outro imoral, o inocente e o bonzinho.
Essas convicções se dissolvem ao longo da trama, quando o roteiro brinca com as intenções de seus personagens. Esse aqui tem um senso de justiça e decência mesmo ou está mais preocupado com o que os outros pensarão dele se esse caso explodir? Aquele ali é uma pessoa intrinsecamente cruel ou está tentando se convencer disso para salvar a própria família? Até onde é possível culpar os pais pelos erros dos filhos?
Precisamos Falar tem um elenco brilhante
Mesmo quando a história começa a parecer monótona e os argumentos giram em círculos na pomposa mesa de jantar para quatro, o elenco consegue trazer nossa atenção de volta com performances efervescentes — algumas um pouco excessivas também, convenhamos. Lidando com um personagem que se sente desobrigado a cumprir com acordos sociais básicos de humanidade, Thiago Voltolini desaparece totalmente em Michel, dando espaço a uma figura tão repulsiva que causa desconforto. Se tivesse interpretado um antagonista como esse no auge das novelas dos anos 2000, o ator estaria em maus lençóis.
O elenco jovem de destaca em muitos sentidos, não perdendo em nada para os atores veteranos que há décadas dão um show nas telas. Inclusive, os personagens adolescentes são bem melhor desenvolvidos, alimentam nossa curiosidade o tempo inteiro, nos magnetizam pelas possibilidades que apresentam. É principalmente por causa deles que passamos o filme todo pensando em consequências, nos limites da crueldade e dos privilégios.
Vale a pena assistir a Precisamos Falar?
O longa-metragem, de Rebeca Diniz e Pedro Waddington, é um trabalho melhor do que a adaptação anterior de O Jantar, aquele lançado em 2017 e dirigido por Oren Moverman. Precisamos Falar traz um recorte bem menos autopiedoso de seus personagens, que expõe hipocrisias da sociedade contemporânea sem tentar defender seus personagens tiranamente. É um filme que permite que os espectadores administrem sentimentos controversos por si próprios.
Apesar de todas as implicações de certo e errado propostas, não é bem um filme que te dá somente uma resposta. Como o próprio slogan afirma, “a verdade ama se esconder” — e é angustiante tentar encontrá-la.
*O AdoroCinema assistiu ao filme no Festival do Rio 2024