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    Kirk Douglas 103 anos: A vida e a carreira de um artista centenário

    Trapeiro, ator, milionário, filantropo, pai de Michael Douglas, ele faleceu na última quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020.

    Mais que um grande ator. Bem mais que alguém muito querido por Vincente Minnelli, Dalton Trumbo e Burt Lancaster. Muito além de pai de Michael Douglas. Uma das celebridades mais longevas de Hollywood. Mas, principalmente, o lendário artista com um legado exemplar como... homem. Ou um menino, como ele se via. Conheça Kirk Douglas, que faleceu na última quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020, aos 103 anos.

    O artista centenário Kirk Douglas faleceu na última quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020, aos 103 anos. O anúncio foi feito por seu filho Michael Douglas. Relembramos (brevemente, claro) a carreira e a vida desse grande ator e tão bom ser humano.

    Issur Danielovitch

    Eis o nome de batismo de Kirk Douglas — cuja troca de alcunha é praticamente uma tradição de família. Filho de Herschel Danielovitch e Bryna Sanglel, Issur veria seus pais adotarem os prenomes Harry e Bertha, respectivamente. O sobrenome se tornaria Demsky, escolhido anteriormente pelo tio paterno. Isso aconteceu porque Harry e Bertha eram imigrantes judeus da localidade de Chavusy, então Império Russo, hoje Bielorrússia. Eles foram para os Estados Unidos antes do nascimento de Issur.

    Infância

    "Meu pai, que era um negociante de cavalos na Rússia, comprou um cavalo e uma pequena carroça e se tornou trapeiro, comprando trapos velhos, peças de metal e lixo em troca de centavos", conta Douglas em sua autobiografia, "O Filho do Trapeiro" (1988). Harry e Bertha criaram Issur e suas seis irmãs na casa mais modesta de uma vizinhança pobre de Amsterdam, cidadezinha de 16km² no estado de Nova York.

    Colegial e Marinha

    Em vez de Issur, o jovem era conhecido como Izzy Demsky. Entre um bico e outro, Izzy passou por cerca de 40 empregos até conhecer a carreira de atuação, ainda no Ensino Médio. Na St. Lawrence University, fez parte da liga de boxe, até conseguir uma bolsa de estudos por meio do grupo de atuação. A Segunda Guerra Mundial, no entanto, atrasou seus planos como ator. Antes de se voluntariar na Marinha, porém, ele viria a tomar uma das grandes decisões de sua vida, trocando legalmente o seu nome para Kirk Douglas.

    Primeiro casamento

    No grupo de atuação da St. Lawrence University, Kirk Douglas arrebatou o coração de duas belas mulheres. Uma delas foi Diana Dill, uma aspirante a atriz com quem ele viria a se casar em 1943, pouco antes de ser aposentado da Marinha por ferimentos durante a Segunda Guerra. Eles foram pais de dois filhos...

    Joel Douglas

    O caçula desse matrimônio nasceu em janeiro de 1947. O nome dele é Joel Douglas, produtor de cinema. O primeiro filho havia nascido em setembro de 1944, e se chama Michael Douglas.

    Michael Douglas

    Ele mesmo! O grande ator de Instinto Selvagem, vencedor do Oscar de melhor ator por Wall Street: Poder e Cobiça e como produtor em Um Estranho no Ninho (você sabia?) é o filho mais velho de Kirk. Além da grande semelhança física, Michael demonstra, a cada aniversário do longevo pai e outras oportunidades, profundo carinho e admiração por seu genitor. Curiosamente, porém, Kirk não queria que Michael seguisse os seus passos...

    Médico ou advogado

    Sempre muito bem-humorado, Kirk Douglas brincou, logo após discurso recente do primogênito em homenagem ao seu centenário: "Eu o via como médico ou advogado. Mas eu o perdoo. Ele é um bom ator..."

    Lauren Bacall

    Como dito antes, Kirk conquistou duas mulheres no grupo de atuação. Além de Diana Dill, uma jovem menina se apaixonaria pelo homem loiro de traços marcantes: Lauren Bacall. A conhecida atriz da Era de Ouro de Hollywood conta que ele era bem pobre (ele chegou a cometer um pequeno delito para passar a noite na cadeia e ter um lugar quente onde dormir), que tinha noção da diferença de onze anos de idade entre eles, mas era fascinada por Kirk. A ponto de sugerir muitas vezes à sua mãe que comessem no restaurante em que ele trabalhava. A ponto de ter sido crucial no início da carreira de Douglas.

    A estreia "estranha" no cinema

    Kirk Douglas tinha planos de seguir carreira nos palcos. Porém, ao saber que o produtor Hal Wallis buscava um novo talento masculino para atuar em seu próximo filme, Lauren Bacall indicou seu amigo (endossada por Humphrey Bogart, que aprovara sua atuação no teatro). Diante da oportunidade, Kirk Douglas fez sua estreia no cinema no filme noir O Tempo Não Apaga (The Strange Love of Martha Ivers, 1946), dirigido por Lewis Milestone, estrelado por Barbara Stanwick e Van Heflin. O fato curioso é que ele interpreta um personagem atípico em sua carreira: um homem fraco, além de bêbado.

    Fuga ao Passado

    Já no ano seguinte, Douglas realiza outro film noir que se tornaria uma pedra fundamental do gênero: Fuga ao Passado (Out of the Past, 1947), do brilhante cineasta Jacques Tourneur. Ele vive um playboy que contrata um velho amigo (interpretado por Robert Mitchum) para trazer de volta sua namorada (Jane Greer), que fugiu para o México.

    O Invencível

    A primeira indicação ao Oscar de Kirk Douglas acontece nesse clássico que retoma sua juventude no boxe. Escrita por Carl Foreman (Matar ou Morrer), a história do pugilista "Midge" Kelly — alegoria e crítica ao famigerado Sonho Americano — é contada em flashbacks, a fim de basear a ambição e perseverança do desportista em sua vida pregressa miserável. A tenacidade mostrada por Douglas em O Invencível (Champion, 1949) representa uma característica básica de seu trabalho de ator (experimentado por outras artistas em seus trabalhos como produtor e diretor).

    A Montanha dos Sete Abutres

    A misantropia explode em mais esse grande filme do mestre Billy Wilder. A Montanha dos Sete Abutres (Ace in the Hole, 1951) acompanha Chuck Tatum, um repórter anti-ético, sem um pingo de humanidade, que faz de tudo por uma pauta. Obra importante, obrigatória para estudantes de jornalismo. A atuação raivosa de Kirk Douglas chegou aos cinemas numa data próxima de seu divórcio de Diana Dill.

    Assim Estava Escrito

    Em sua primeira colaboração com o lendário cineasta Vincente Minnelli, Douglas recebeu sua segunda indicação ao Oscar. No caso, ele interpreta o produtor de Hollywood megalomaníaco Jonathan Shields no melodrama Assim Estava Escrito (The Bad and the Beautiful, 1952). Um personagem tirano, conivente, livremente baseado na figura de David O. Selznick e que traça um paralelo com o que acontece sob a aparência de glamour da indústria cinematográfica norte-americana.

    Anne Buydens

    Kirk conheceu Anne no set de Sede de Viver, quando ela já trabalhava como produtora. Natural da Alemanha (onde também nasceu com outro nome, Hannelore Marx), de ascendência belga, ela foi para os Estados Unidos em fuga do Nazismo. Encontrou emprego na indústria cinematográfica como tradutora, devido à sua fluência em muitos idiomas. No dia 29 de maio de 1954, eles se casaram...

    Felizes para sempre

    ... e seguiram casados até sua morte. Com Anne, Kirk teve outros dois filhos homens.

    Peter Douglas

    Pete nasceu em novembro de 1955. Seguiu os passos da família, claro, tornando-se produtor televisivo e cinematográfico. Na imagem acima, ele passeia com o pai pelo set do filme Sede de Vingança (The Hook, 1963).

    Eric Douglas

    O caçula da família foi mais na linha do pai e do irmão mais velho, tendo atuado como ator e também comediante stand-up. Rebelde, Eric foi preso algumas vezes, por motivos diversos, principalmente por seu envolvimento com as drogas. Ele entrou e saiu de clínicas de reabilitação aproximadamente 20 vezes, até que, em 2004, não sobreviveu a mais uma overdose. Ele tinha 46 anos.

    Sede de Viver

    Em sua segunda colaboração com Vincent Minnelli, Douglas venceu um Globo de Ouro e recebeu sua última indicação ao Oscar. O filme em questão é Sede de Viver (Lust for Life, 1956), cinebiografia do brilhante e perturbardo pintor Vincent van Gogh.

    Sem Lei e Sem Alma

    Conhece Tombstone? Eu, particularmente, tenho muitos amigos que nem são fãs de faroeste e adoram esse filme. Se você se inclui nessa lista, conheça Sem Lei e Sem Alma (Gunfight at the O.K. Corral, 1957), western do renomado John Sturges que recria o histórico evento envolvendo Wyatt Earp e Doc Holliday. Como outras seis vezes, Kirk Douglas trabalhou ao lado de seu melhor amigo no cinema, Burt Lancaster.

    Glória Feita de Sangue

    Kirk Douglas faz pose ao lado do brilhante Stanley Kubrick no set de Glória Feita de Sangue (Paths of Glory, 1957). Situado na Primeira Guerra Mundial, o filme é um dos grandes clássicos anti-bélicos da história do cinema, retratando uma ofensiva impossível, estúpida, de um exército francês comandado por figuras arrogantes. O Coronel Dax de Kirk Douglas é o único que parece enxergar a barbárie ao redor, numa atuação apaixonada, louvável.

    Caminho glorioso

    Nos bastidores de Glória Feita de Sangue, Kirk Douglas brinca com um prêmio da Academia genérico, produzido por sua família. "Toda criança é naturalmente um ator, e eu ainda sou uma criança. Se você crescer completamente, você nunca será capaz de ser um ator", disse Douglas, em entrevista histórica.

    Spartacus

    A segunda colaboração entre Douglas e Kubrick aconteceu devido a um desentendimento do protagonista e produtor com o diretor Anthony Mann. Kirk estava certo. Escrito por Dalton Trumbo, Spartacus (idem, 1960) — uma alegoria sobre a tirania política, uma mensagem de solidariedade aos necessitados — viria a ser muito elogiado, se tornar um clássico e o papel mais emblemático de sua carreira.

    Sua Última Façanha

    Em sua segunda parceria com Trumbo, Kirk Douglas realiza Sua Última Façanha (Lonely Are the Brave, 1962), filme de baixo orçamento sobre o fim do western. O conflito desse período de transição é personificado por Jack Burns, um caubói do Novo México que não possui registro civil, endereço fixo ou qualquer apreço pelo mundo moderno. Um filme tocante, com um final poderoso e um protagonista que é o personagem predileto de toda a carreira do aniversariante do dia.

    A Cidade dos Desiludidos

    Edward G. Robinson. Trata-se da terceira colaboração com Vincente Minnelli, sim, mas A Cidade dos Desiludidos (Two Weeks in Another Town, 1962) merece menção pela presença do grande Edward G. Robinson. Tal como em Assim Estava Escrito, Douglas vive um personagem inspirado por um artista real, Tyrone Power. O longa-metragem — tão ácido, cínico — também porta ecos de A Doce Vida.

    Sete Dias de Maio

    O último grande filme da carreira de Kirk Douglas é o thriller político de John Frankenheimer sobre um possível golpe militar contra o presidente americano. Kirk Douglas é, novamente, coadjuvante de Burt Lancaster, que vive um general cada vez mais contrário ao desarmamento nuclear proposto pelo principal líder dos Estados Unidos. A História conta que Sete Dias de Maio (Seven Days in May, 1964) foi discretamente financiado por John F. Kennedy.

    Globo de Ouro - Parte II

    O segundo prêmio da Associação de Correspondentes Estrangeiros de Hollywood vencido por Kirk Douglas aconteceu em 1986, pelo telefilme Amos. Ele interpreta um homem que perda a esposa e o lar num acidente doméstico, e passa a travar uma batalha cotidiana com a arbitrária enfermeira-chefe do asilo em que vive, Daisy Daws (Elizabeth Montgomery).

    Tragédia e religião

    Em fevereiro de 1991, ano em que atuou em Veraz, Kirk Douglas sobreviveu a um acidente gravíssimo: ele viajava num helicóptero que colidiu com um avião de pequeno porte. Dois passageiros do helicóptero também se feriram e outros dois no avião morreram. A experiência de quase-morte levou o ator a buscar um significado no ocorrido, em sua sobrevivência, e voltou às suas raízes no judaísmo — que, anos antes, ele próprio tentou negar. Sua jornada espiritual foi documentada no livro: "Climbing the Mountain: My Search for Meaning" (2001).

    Oscar honorário

    Com três indicações ao Oscar durante a carreira, Kirk Douglas nunca venceu o prêmio da Academia. Em 1996, porém, ele recebeu um Oscar honorário por seus "50 anos como uma força criativa e moral dentro da comunidade cinematográfica". Homenagem merecidíssima — como veremos logo adiante. Tristemente, no mesmo ano, o artista viria a sofrer um derrame que debilitou a sua fala.

    Filantropia

    Ao longo da vida, e sempre ao lado de sua amada esposa Anne, Kirk Douglas realizou diversos trabalhos filantrópicos, desde doar centenas de milhões de dólares a causas beneficentes (boa parte delas contemplando profissionais de cinema e TV com problemas financeiros e, principalmente, de saúde) até servir refeições aos sem-teto no feriado de Ação de Graças.

    Uma vida em prol do outro

    Em seu aniversário de 99 anos, por exemplo, o grande presente foi ele mesmo quem deu: US$15 milhões ao Fundo Cinematográfico e Televisivo. Em reconhecimento, a instituição anunciou que a instalação de US$35 milhões para tratamento de 80 artistas que sofrem de Alzheimer seria batizada como Kirk Douglas Care Pavilion.

    Escritor

    Longevo e versátil, Kirk Douglas também era um homem das letras. E se engana quem pensa que ele apenas assinou autobiografias de escritores-fantasmas. Após o livro sobre sua vida "O Filho do Trapeiro", ele escreveu o romance "Dança com o Diabo" — ficção cujos personagens têm forte ligação com experiências pessoais, comprovando a autoria de sua obra.

    A vida poderia ser verso

    O canto do cisne de Kirk Douglas como escritor foi uma homenagem ao grande amor de sua vida, Anne. "Pra mim, esse é o meu melhor livro, e último livro", ele declarou sobre "Life Could Be Verse: Reflections on Love, Loss, and What Really Matters". A obra de poesia sobre "amor, perda e o que realmente importa" encerra sua carreira literária com um admirável total de 11 livros.

    Blogueiro

    Kirk Douglas mantinha um blog com atualizações semiregulares no Myspace. Desde 2012, o site Huffington Post publicava seus textos. Com isso, ele se tornou o blogueiro mais velho do mundo dentre as celebridades.

    Eis a singela homenagem do AdoroCinema a um homem que, como vimos, construiu um legado que vai muito além de sua contribuição cinematográfica. Mais que um grande artista, Kirk Douglas era um marido, um pai e um cidadão de máximo respeito. Um grande menino, um grande homem.

    Issur, Izzy, Kirk: que descanse em paz!

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