NOTA: 4,0/5,0
"Ele é um gay fanático e louco, viciado em armas, grandes felinos e drogas. Ele não era real. Era como um personagem mítico morando no Quinto dos Infernos".
Poucos trechos definiriam tão incisivamente a figura inesparadamente simbólica que se criou ao redor de Joe Exotic, mais conhecido como Tiger King. Recentemente, uma série documental contando a sua caótica história estreou na Netflix sob o título de A Máfia dos Tigres. Ao longo de sete episódios, acompanhamos a história gradativamente trágica do criador de tigres que atingiu a fama das maneiras menos ortodoxas possíveis.
Primeiramente, vale ressaltar o quão impossível é ter apenas um pensamento ao assistir os primeiros minutos de A Máfia dos Tigres. Só no capítulo inicial, por exemplo, a série documental aborda uma quantidade considerável de aspectos sociais, políticos, humanitários, inclusivos e, é claro, bizarros — tudo em um inacreditável espaço de apenas 48 minutos.
Se você já viu algum documentário original Netflix, deve saber muito bem que a maneira como seus recortes são construídos é um dos grandes trunfos do serviço de streaming. A primeira grande investida do serviço neste tipo de formato episódico veio com Making a Murderer, que narrava a história de um homem condenado por assassinato sob uma investigação duvidosa, controversa e, para muitos, injusta.
Hoje já não é segredo para ninguém que a gigante do streaming sempre busca oferecer a ambiguidade quando desenvolve narrativas documentais, nunca oferecendo visões conclusivas demais, mas sempre mostrando como uma pequena e peculiar história pode dizer tanto sobre seus arredores. E talvez seja isto que faz A Máfia dos Tigres tão interessante de ser assistida.
Os fãs de uma boa investigação poderão ter uma experiência bem interessante aqui, visto que após os dois primeiros episódios, a série mergulha nas acusações de assassinato feitas em cima de Joe Exotic, e passa a adotar um tom muito mais enigmático. Como um rapaz tão caricato e aparentemente inofensivo poderia cometer um crime tão bizarro? A resposta está na incógnita de sua figura, coisa que a Netflix soube explorar muito bem: quanto mais conhecemos Joe, menos o entendemos.
Outro ponto a favor do lado mais "jornalístico" dos fatos, é que os acontecimentos são narrados com um tom bastante pessoal de seu idealizador, um cineasta que acabou conhecendo Joe por acaso enquanto ia atrás de uma história sobre tráfico ilegal de cobras venenosas. A aleatoridade do encontro parece combinar perfeitamente com a história que acompanhamos.
Ainda nos primeiros episódios, mergulhamos de cabeça em um mundo que, para muitos, é completamente desconhecido: quem são estas pessoas que possuem um fascínio tão enorme por felinos de grande porte? Conhecemos adestradores, amantes de animais, donos de zoológicos, de ONGs, exploradores, aventureiros... todos com o mesmo sentimento potencialmente nocivo por tigres.
O charme de A Máfia dos Tigres está justamente aí. Em uma cena, estamos acompanhando o noticiário falando a respeito de uma misteriosa tentativa de assassinato supostamente encomendada por Joe, e na cena seguinte vemos um homem de meia-idade montado em um elefante segurando um tigre filhote em cima de seu ombro.
E por mais que isso tudo pareça uma grande piada de péssimo gosto, ou uma cena de uma sitcom britânica — é possível imaginar perfeitamente estas pessoas em um episódio especial de The Office no zoológico —, toda a sequência de eventos aleatórias e esquisitos reforça o quanto a vida de Joe Exotic possui um espírito recheado de um misticismo caricato.
Além de estar atualmente na prisão (a série não esconde isso em nenhum momento), Joe já fez todo tipo de coisa imaginável durante sua vida, sempre mantendo uma dose de esquisitice peculiar. Mágico, atirador, adestrador, empresário, palestrante, presidiário, apresentador, político — e por aí vai. E como a realidade muitas vezes é bem mais estranha do que a ficção, todas as figuras que cercam a vida de Joe são tão únicas quanto ele mesmo.
Desde o produtor que já se ateou fogo propositalmente até a grande antagonista de Joe (e vítima da tentativa de assassinato) que defende os animais fazendo uma reportagem sentada dentro de uma cela para protestar sobre os maus tratos, tudo é metódicamente construído por um acaso que só poderia ter sido escrito por alguém.
E tudo isso, é claro, sendo transicionado por clipes musicais feitos por Joe que mais parecem filmagens escondidas da Deep Web, dado o nível de detalhes cômicos que certamente foram levados a sério por quem os filmou.
Aliás, falando sobre esta moça em questão, Carole Baskin antagoniza Joe até mesmo nos holofotes. Em A Máfia dos Tigres, por exemplo, ela rouba completamente a cena em alguns momentos, seja mostrando o santuário que construiu para abrigar os animais resgatados ou aparecendo vestida como uma hippie dos anos 60 para dar as entrevistas ao documentário.
Mas em muitos momentos, A Máfia dos Tigres também sabe falar sério. O fato de Joe ser um homossexual que sofreu a reclusão pelos próprios pais e tentou tirar a própria vida por isso, encontra um lugar para gerar debate e reflexão no meio da história, mesmo que rapidamente. Sempre que o passado de Joe é colocado em pauta, questões como aceitação, depressão e estrutura familiar são floreadas com objetividade, mas sem quebrar o ritmo. Todas estas coisas, inclusive, mostram-se influências fortes na figura agressiva e problemática que é o Joe.
No meio disso tudo, a moralidade por trás da ideia de um zoológico, por exemplo, está presente como plano de fundo do início até o fim da série. Mesmo quando a investigação toma um ar mais imponente, os debates políticos e sociais de manter animais em jaulas continuam presentes. E talvez o único defeito de A Máfia dos Tigres seja não saber dosar isso da melhor maneira quando surge a necessidade de um equilíbrio. O que faz, às vezes, com que o tempo de sete episódios, pareça um pouco longo, mas nada que vá fazer com que a dinâmica se quebre.
No fim das contas, a completa dificuldade em definir do que se trata A Máfia dos Tigres é também o que faz com que a série seja tão interessante e peculiar. Aqueles que são apaixonados pelo ritmo caótico de acontecimentos e não se importam em sentir choque, vergonha alheia, incompreensão, surpresa, comédia e aflição (tudo ao mesmo tempo), certamente encontrarão seu lugar na audiência da série. O próprio Joe, aliás, certamente iria gostar também.