Magnífica 70, produção nacional da consagrada HBO, pode ser analisada sob diferentes aspectos. Um deles é histórico: trata-se de uma série ambientada nos anos 1970, em plena ditadura militar, que não tem medo de apontar os abusos cometidos no período. Neste sentido, trata-se até mesmo de um serviço de utilidade pública, visto que vários são os filmes nacionais que amenizam as atrocidades e ingerências cometidas pelos militares em sua passagem pelo governo. Aqui, há um clima contínuo de ameaça no ar, representado pela figura aterrorizante do censor e sua caneta proibitiva e, posteriormente, pelo general Souto (Paulo Cesar Pereio). Afinal de contas, o ambiente principal da história é a Boca do Lixo, área de São Paulo famosa pela existência de várias pequenas produtoras que investiam na produção de pornochanchadas que conciliavam a fórmula baixo orçamento e lucro nas bilheterias. Para elas, nada poderia ser pior do que ter um de seus filmes dilacerado ou, pior, vetado.
É o que acontece com “A Devassa da Estudante”, nova produção da Magnífica Cinematográfica. Encarregado em avaliar “mais um filme brasileiro de mulher pelada”, o censor Vicente (Marcos Winter) fica abalado com as semelhanças entre a protagonista Dora Dumar (Simone Spoladore) e sua falecida cunhada, Ângela (Bella Camero). Vicente, na verdade, vivenciou uma história que poderia facilmente ter sido escrita por Nelson Rodrigues: era o alvo da irmã caçula de sua atual esposa, Isabel (Maria Luisa Mendonça), que queria conquistá-lo a todo custo para deixar a casa dos pais. As semelhanças com Bonitinha, Mas Ordinária, inclusive no uso do sexo como meio de manipulação, não são mera coincidência.
Após vetar integralmente o longa-metragem, Vicente retorna à sua vida pacata e burocrática. Até que, um dia, surgem no escritório o produtor Manolo (Adriano Garib) e a própria Dora Dumar. Tentado pelas lembranças do passado e a atração que sente pela atriz, ele se aproxima da dupla e oferece a solução do veto que ele mesmo deu: que uma cena extra seja rodada, de forma a justificar as possíveis “dúvidas subversivas” que o filme traria. Aí surge o grande pulo do gato desta primeira temporada: o próprio Vicente é encarregado de rodá-la.
A partir de então, o que se vê é uma paulatina (e deliciosamente irônica) transformação do censor do governo em um apaixonado pelo cinema, daqueles que não apenas passam a reconhecer o trabalho feito por mestres como Alfred Hitchcock e Stanley Kubrick – a citação a Laranja Mecânica é maravilhosa! -, como deseja replicá-lo. A devoção de Vicente a este mundo recém-descoberto é tocante pelo lado da paixão pelo cinema, que traz outro sentido à sua vida. Por outro lado, precisando manter as aparências perante o trabalho e sua própria família, ele é forçado a agir de forma cada vez mais cínica, de forma a se proteger nesta realidade onde todos estão de olho em todos, seja para “servir à pátria” ou por interesses pessoais. A tensão, palpável, é uma das molas mestras da série, ampliada pela sucessão cada vez maior de mentiras que se avolumam e, sabe-se, um dia cobrarão seu preço.
Há em Magnífica 70 outros três protagonistas: Dora Dumar, Manolo e Isabel, cada um com histórias do passado que voltarão a assombrá-los no decorrer da temporada. Chama a atenção a opção narrativa do flashback, explorada especialmente nos primeiros episódios, que lembram o artifício usado em Lost: o público é apresentado a um personagem e, através do que aconteceu com ele, passa a compreendê-lo ao mesmo tempo em que, no presente, ele assume uma nova faceta. Além do quarteto principal, há vários outros personagens marcantes que representam a “fauna do cinema”: o ator vaidoso que se considera um astro, a aspirante a estrela, o fotógrafo arrogante, o dono picareta da produtora, os investidores que desejam dar pitaco em tudo... Tudo meticulosamente planejado para se encaixar na trama central e, também, absolutamente verdadeiro. É a história do cinema brasileiro, ou ao menos uma delas, esmiuçada de forma impressionante a cada novo episódio.
Impressionante também é o apuro na produção da série. Além de uma deslumbrante direção de arte, Magnífica 70 traz uma surpreendente variedade estética decorrente das lentes utilizadas ao rodar “A Devassa da Estudante” ou “Minha Cunhada é de Morte”. Outro ponto que merece destaque é o lado conceitual existente nos episódios, de forma a valorizar o aspecto cinematográfico em voga naquele momento. O melhor exemplo acontece no 9º capítulo, “Música!”, onde a trilha sonora ganha força, mas há vários casos do tipo no decorrer da temporada, especialmente quando “Minha Cunhada é de Morte” ainda está sendo rodado. Méritos para Claudio Torres e Carolina Jabor, a dupla de diretores que demonstrou não apenas um profundo conhecimento sobre a época retratada, mas também sobre técnicas de narrativa.
Outro grande destaque é o elenco! Sem qualquer estrela do cinema ou da TV, mas repleto de nomes conhecidos, cada ator escalado serve com brilhantismo ao que o personagem necessita. Marcos Winter, Simone Spoladore, Maria Luísa Mendonça e Adriano Garib são os grandes destaques, cada um trazendo nuances que se transformam graças às várias reviravoltas oferecidas pelo roteiro. Paulo César Pereio, Bella Camero e Roney Villela também têm grandes momentos.
Extremamente corajosa pelo tema abordado e pelo cuidado em ser verídico sem soar didático, Magnifica 70 é uma série excelente que ressalta bastante o que é o Brasil e suas mazelas, sejam elas de comportamento ou institucionais de momento. Com ecos de Nelson Rodrigues e habilidade ao conduzir suas diversas subtramas, o roteiro surpreende não apenas pela tensão sempre presente ao longo de 13 episódios, por mais que haja alternâncias de estilo e origem, mas também pela devoção ao cinema, que aos poucos conquista os personagens e o espectador. Não é à toa que o auge vem no 5º capítulo, “O Primeiro Dia”, com a arrepiante sequência concluída com a emblemática frase “Hoje a gente fez cinema”. Que venha a segunda temporada!