por Lucas Salgado
Volta e meia uma pessoa pergunta: como pode um site chamado AdoroCinema também falar de séries de TV? Pois bem, produções como True Detective dão a resposta. Você não precisa mais necessariamente ir ao cinema para assistir projetos complexos, sérios, reflexivos e com atuações de nomes consagrados. A divisão entre "atores de TV" e "atores de cinema" vai caindo cada vez mais rapidamente, ao ponto de em 2014 termos uma grande série estrelada por um ator que levou o Oscar no mesmo ano (Matthew McConaughey, por Clube de Compras Dallas).
Criada por Nic Pizzolatto, True Detective conta a história de uma dupla de policiais que investiga o assassinato de uma jovem garota, que apresenta traços de ritual satânico. Quase 20 anos após o crime, os dois, agora brigados, são chamados para depoimentos no departamento de polícia e são obrigados a confrontar um caso que não havia sido completamente solucionado.
McConaughey vive Rust Cohle, um detetive descrente que nunca deixa de falar o que está pensando, por mais bizarro e inconveniente que seja. Ele tem como parceiro Martin Hart (Woody Harrelson), um detetive mais experiente, casado com Maggie (Michelle Monaghan) e com duas filhas. A série é um estudo de personagens extraordinário. Temos o ateu e o religioso, o sujeito focado no trabalho e o que se preocupa com a família, aquele que quer viver caso a caso e o que pensa na repercussão política e profissional. Ainda com estas diferenças, a produção não deixa o espectador duvidar em momento algum que tratam-se de grandes policiais.
É impossível não elogiar a produção sem destacar o canal responsável. A HBO mais uma vez dá um show, sendo responsável direta por promover a estética cinematográfica na TV, como faz também em produções como Boardwalk Empire e Game of Thrones. O trabalho de design de produção é incrível, em especial ao que diz respeito às caracterizações dos personagens e ao desenho dos cenários. Mas o que faz a série funcionar quase como cinema é a fotografia do australiano Adam Arkapaw, responsável por filmes como Lore e Reino Animal. Ele retrata o sul do estado da Louisiana utilizando-se de cores pouco quentes (com algumas exceções) e reforçando o sentimento de vazio proveniente do cenário rural e da região com diversos lagos e verdadeiros pântanos.
Curiosamente, a série foi rodada em 35mm, num momento em que o próprio cinema abandona o formato. Ainda que chegue via televisão, é notável a textura cinematográfica da obra, com uma estética um pouco nostálgica. O trabalho de Arkapaw mereceria um Oscar de Fotografia, principalmente pela forma como retrata os momentos com Hart e Rust em ação, e aqueles em que prestam depoimentos. O diretor de fotografia utilizou-se de câmeras diferentes e de níveis de contraste diversos. Com isso, temos um visual mais moderno nas tomadas dos depoimentos, sempre com a câmera parada. Já fora das entrevistas, temos a câmera sempre em movimento, quase que explorando o cenário em companhia dos detetives. Ao final do quarto episódio, somos presenteados com um plano-sequência de fazer inveja a Alfonso Cuarón. Uma coisa linda.
True Detective é uma série policial sem precedentes e tem como principal mérito o fato de prender o espectador já em seu episódio-piloto. Ainda que a trama comece, propositalmente, com uma série de lacunas, a produção informa o bastante para deixar o público intrigado e interessado em seus protagonistas, em especial no exótico Rust.
A série confirma a evolução como ator de Matthew McConaughey, que já vinha se destacando em obras como Killer Joe - Matador de Aluguel, Obsessão, Magic Mike e Amor Bandido, sem falar na ótima ponta em O Lobo de Wall Street. Ele é o grande nome do elenco, mas Harrelson também não deixa por menos, entregando uma atuação incrível e, em alguns momentos, mais complexa e humana. O elenco conta ainda com nomes como Kevin Dunn, Jay O. Sanders e Alexandra Daddario. A jovem atriz de Percy Jackson tem uma participação rápida, mas oferece uma personagem intensa e instável, que coloca em risco o casamento de Hart. Ela também se destaca pela beleza e pela coragem nas cenas de nudez. Neste sentido, cabe novo elogio a HBO, que não faz concessões no que diz respeito ao sexo, à violência e ao consumo de drogas, legais (álcool e cigarro) ou não. O que importa é a história e não eventual classificação etária.
Todos os oito episódios foram dirigidos por Cary Fukunaga (Jane Eyre) e escritos por Pizzolatto (The Killing), algo raro na TV americana, mas que pode se tornar mais comum agora, afinal a uniformidade da série é um de seus pontos altos. O fato de contar com um só diretor é de fundamental importância para uma história como esta, que não precisa de pessoas diferentes impondo estilos diferentes.
Como toda série policial, esta aqui tem seu vilão, que possui até um nome de vilão: o Yellow King (Rei Amarelo). Mas a existência do antagonista é apenas para manter a história andando, afinal ele está longe de ser um dos destaques da produção. Pouco importa seu passado ou se vai ser mesmo apanhado, o que queremos ver é a jornada de Rust e Martin, e a forma como veem o mundo.
Com um vilão que lembra um pouco Norman Bates, do clássico Psicose, de Alfred Hitchcock, a série também se inspirou em obras dos quadrinhos. O próprio Pizzolatto reconhece que uma de suas referências foi Alan Moore. De Moore, você não vai encontrar nada de Watchmen ou V de Vingança, além de protagonistas falhos, mas é impossível não lembrar de Monstro do Pântano, também passado na Louisiana. Há também elementos de Do Inferno na trama.
A série já tem sua segunda temporada confirmada, mas sem a volta dos protagonistas. Se por um lado é triste saber que não contaremos com as brilhantes performances de McConaughey e Harrelson, é empolgante não saber o que virá pela frente.