Em fevereiro de 2019, o público alemão teve a oportunidade de conhecer um pouco sobre a luta pela reforma agrária no Brasil. O documentário Chão, dirigido por Camila Freitas, foi apresentado no 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, dentro da Mostra Forum.
A cineasta e sua equipe conviveram com integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MTST) no centro do país, acompanhando a luta diária tanto nas ocupações quanto nas instâncias judiciais. O AdoroCinema conversou em exclusividade com a cineasta sobre o belo filme:
Você tinha a intenção de desconstruir a imagem negativa do MST na mídia tradicional?
Camila Freitas: No começo eles ficavam muito preocupados, apesar de serem bastante receptivos. Eu praticamente fui convidada para fazer esse filme, mas eles tinham uma preocupação forte com a maneira de representá-los para o mundo, justamente por conta desse preconceito histórico. Mas o processo foi bastante longo, com a nossa convivência intensa… A gente não só ia filmar, a gente vivia ali, a gente dormia na barraca, a gente comia com eles.
A relação criada com os integrantes fez com que eles se apropriassem muito do filme e participassem realmente, como membros da equipe. Cada pessoa desempenhou algum papel, e nosso produtor local era personagem do filme também. Espero que dê para perceber que nada ali foi imposto, tomamos decisões em conjunto. Tudo foi muito conversado antes de filmar.
Houve alguma restrição deles sobre o que não gostariam que você filmasse? Você mesma traçou um limite do que não considerava ético registrar?
Camila Freitas: Bom, eu amo o Movimento dos Sem Terra, sou uma entusiasta. Logo, nunca vou querer prejudicar a imagem deles, é claro. O mais delicado eram as estratégias de ocupação. No começo eles não tinham noção de quanto tempo o filme levaria para ficar pronto, ou de que maneiras seria difundido.
Eles estão muito acostumados com vídeos que circulam na internet, viralizam e são capturados pelo MBL [Movimento Brasil Livre] e por conservadores contra eles. No entanto, o meu compromisso ético comigo mesma e com a equipe era não miserabilizar ninguém. Todo o esforço do filme consiste em trazer uma imagem de força do movimento, porque é o que eu vejo neles.
Você não se concentra nas discussões internas do grupo.
Camila Freitas: Honestamente, eu vi poucos conflitos internos por ali. Chegam pessoas de todos os lugares, cada um com uma ideia do que é a luta e lançam alguma proposta, que é encaminhada à direção. Depois, obviamente, vão ter membros da coordenação em uma posição não exatamente hierárquica, mas com uma experiência maior, o que é muito valorizado no movimento. Então dizem algo assim: “Não, calma lá! Isso não dá, vamos pensar melhor!”. Para mim, isso é um confronto de ideias, não exatamente um conflito.
O filme é esteticamente impressionante. Filmes políticos costumam imprimir um tom de urgência, mas Chão é calmo, contemplativo.
Camila Freitas: Esse é um olhar de estabilidade, diferente da câmera na mão o tempo todo… Para mim isso tem a ver com a maneira de observar a paisagem. O Brasil se tornou um agronegócio, não é? O meu grande interesse era ver de que maneira esses territórios se transformavam, como subsiste uma lógica de produção familiar sem agrotóxicos, com uma lógica social de cumplicidade, de solidariedade, de conversa e de decisão coletiva, em um solo dominado por forças extremamente verticais. Além disso, o tempo da luta é um tempo muito estendido, e o tempo da terra também.
O projeto começou há muitos anos. De que modo as transformações políticas brasileiras influenciaram no resultado final?
Camila Freitas: No começo do projeto, a gente vivia um período de efervescência do movimento. Passamos por 2013, 2014, quando o Brasil foi tomado por protestos. Na primeira ocupação onde eu fui, tinham 3.500 famílias. Estávamos no governo Dilma, certamente muito problemático, porque não aconteceu a reforma agrária como a gente imaginou que teria. No entanto, existia uma possibilidade de diálogo. O MST considerava que era possível fazer uma pressão mais incisiva.
Com o golpe de 2016, muitas pessoas deixaram o movimento. Teve um processo de criminalização mais forte, além da paralisação dos processos de reforma agrária. De certo modo, as pessoas foram desistindo, não do movimento em si, mas a resistência permaneceu numa esfera micro. Em um primeiro momento, eu pensava em fazer um filme ligado às macroestruturas, e na medida que o tempo foi passando, eu fui entendendo que as macroestruturas não estavam oferecendo muitas coisas. Tudo o que eles tentavam não dava certo.
Então eu decidi me voltar ao funcionamento interno mesmo. Essas involuções, até chegar no Bolsonaro, afetam diretamente a maneira como o movimento se organiza, e que tipo de ação eles planejam. É claro que isso é muito sutil, pois o filme não se propõe a explicar cada passo. Mas eu queria criar essa atmosfera de espera, ao invés do clima de porrada, por mais que isso exista também. A gente precisa continuar resistindo de uma forma muito engenhosa e inteligente.
Você espera que o documentário sirva como instrumento de conscientização, e que exerça uma pressão concreta pela reforma agrária?
Camila Freitas: Sim. Tenho muita expectativa, e tenho gostado bastante das reações de várias pessoas aqui [no Festival de Berlim]. São pessoas de outros países, que não têm a menor ideia do que realmente acontece no Brasil. Nesse sentido, talvez sejam informadas com relação à situação política geral. Isso me dá uma esperança porque, ao mesmo tempo, o Movimento dos Sem Terra gosta muito do filme e quer usar o filme como ferramenta de incentivo, de luta, de emoção, de criação de empatia dentro do próprio movimento.
Eu espero que o filme tenha o potencial de criar empatia com quem acredita que o movimento é composto por um bando de terroristas. Acredito sinceramente que, vendo o meu filme, as pessoas possam perceber que a realidade é diferente. Não sei se todo mundo vai ter essa percepção, mas é possível que o filme toque algumas pessoas, e eu torço por isso.
Ao mesmo tempo, Chão destaca a importância das mulheres à frente do MST.
Camila Freitas: O MST tem uma preocupação muito grande em buscar a equidade de gênero - sobretudo em Goiás, que é um estado muito machista, e no Mato Grosso também. Então, existe a paridade em cada setor. Cada coordenação, cada direção tem um homem e uma mulher à frente de cada tarefa. Por exemplo, o setor de alimentação tem uma coordenadora e um coordenador.
Na montagem, eu quis destacar este aspecto porque ele reflete o fato de que muitas vezes as mulheres conduzem a luta enquanto os homens fazem trabalhos fora das ocupações, porque os integrantes não têm fomento nenhum no acampamento. Então, os homens trabalham como caminhoneiros, operários ou algo do tipo, enquanto as mulheres tocam a luta.