Três décadas de carreira na animação, ilustrações de mais de 30 livros, comerciais, três curtas, um piloto, dois longas, supervisão de uma série para a TV e uma celebrada indicação ao Oscar que animou a torcida brasileira. Alê Abreu finalizou O Menino e o Mundo em 2013 e agora, quatro anos mais tarde, segue rodando o mundo exibindo e discutindo a emocionante animação, lançada em mais de 100 países e vencedora de cerca de 50 prêmios, entre eles os principais do tradicional Festival de Animação de Annecy.
Em São Luís do Maranhão como membro do júri do Festival Guarnicê, Alê apresentou sua trajetória a alunos de audiovisual e conversou com o AdoroCinema sobre Oscar, Netflix, a série baseada em O Menino e o Mundo que está sendo produzida na França e seu próximo longa, Viajantes do Bosque Encantado – que nasceu há dois anos com uma frase sobre crianças e anjos caídos no bosque onde deixam suas asas antes de seguir para o mundo dos homens.
Ouvi falar pela primeira vez da série francesa baseada em O Menino e o Mundo na sua masterclass aqui. Como será?
Não foi muito [divulgada], mas foi um tanto. Estão fazendo lá e é muito interessante, porque não é exatamente uma série do Menino. Chama-se Menino et les Enfants du Monde, mas não tem o mesmo mote do longa. Eles usam o personagem e o cachorro. Não é o menino procurando o pai, apenas passeando, e em cada episódio ele está em um país diferente. É uma mistura de animação com documentário. O Didier Brunner [produtor de Ernest & Celestine e As Bicicletas de Belleville], que é o produtor, teve essa ideia de pegar o material bruto do longa A Caminho da Escola, que documenta as desventuras de quatro crianças no caminho para a escola (uma tem que atravessar o deserto com cobras, outra tem que atravessar um rio, coisas assim, crianças fazendo um esforço incrível, bonito, para ir estudar), misturar e criar a série. Eles documentam cada episódio num lugar, a vida da criança ali, e o Menino fazendo um diálogo poético com aquele momento. É muito bonito.
Ele continua sem falar?
Sem falar. É a mesma linguagem, o mesmo personagem, bem o jeitinho do filme. Visualmente é bastante parecido, eles estão tentando captar bem o universo. Fizeram um piloto e me mandaram há pouco tempo. Estão atrás de investimento agora, então pode ser que a coisa demore mais. Não é um projeto fácil, porque é animadoc, para TV educativa. Vamos ver... Estou curioso.
Tomara que saia do papel e chegue aqui também...
Se chegar será na TV Cultura.
Há também a série que você supervisionou e será lançada no Discovery Kids em breve, não é mesmo?
A Vivi Viravento, que foi dirigida pela Priscilla Kellen, minha companheira, coordenadora artística de O Menino e o Mundo, assistente de direção, que agora foi convidada pela Mixer para dirigir. É uma criação minha que eles não quiseram que eu dirigisse, nem me chamaram. Acho que ficaram com medo porque sou meio chato, sabe? Sou muito detalhista e para série isso não é bom. Dirigir série é completamente diferente de dirigir longa. Longa você pilota na autoestrada, toma decisões com antecedência. A série é pilotar no rush na cidade grande. São decisões na hora, quase não tem espaço para criar, é um troço muito diferente, muito mais difícil em alguns aspectos. Mas a Pri se saiu superbem, apesar de todo o sofrimento. São 26 episódios de 11 minutos e estreia na Discovery Kids em julho ou agosto. A série está linda.
E como vai o filme novo? Você disse mais cedo que tem muito diálogo e a Laís Bodanzky e o Luiz Bolognesi são os produtores.
Viajantes do Bosque Encantado está em andamento. A gente fez algumas versões de roteiro – estou na quinta e dizem que roteiro bom é só do oitavo tratamento para a frente –, algumas versões de animatic* e continuo insistindo na coisa da história, porque é muito o coração deste projeto. Como é um projeto grande, envolvendo coprodutores, não posso me dar ao luxo de mergulhar como foi no Menino, não pode ter abertura ao acaso. É um filme que precisa nascer muito redondinho no animatic, porque uma parte vai ser produzida lá fora, outra parte vai ser produzida não sei onde, então precisa estar muito arquitetado.
*espécie de esboço da animação
As primeiras informações indicavam que a trama seria relacionada ao conflito Israel-Palestina. Procede?
Essa ideia pegou, um fala para o outro e vai crescendo. Ele é tão ou menos o tema quanto se eu dissesse que O Menino e o Mundo tem a ver com América Latina. Assim, tem até um ponto em que me inspirou, mas o legal é quando a realidade que te inspira e te move vai ficando como pano de fundo distante, porque vai servindo de combustível para uma fábula e a fábula é tão mais interessante que você embarca. De repente nem é mais, estou tratando do reino do Sol e da Lua, não tem nada de Israel e Palestina. Mas enfim... O mito agrada? Publica-se o mito. Todo mundo está falando esse negócio e eu penso: ‘Gente, quando foi que eu disse isso?’.
Agora Viajantes está na etapa de desenvolvimento, mas já existe previsão de lançamento? A Vitrine vai distribuir?
Isso, ganhamos agora o fundo setorial, então já passamos da metade do orçamento de captação. O restante que falta está praticamente certo, vamos fechar com uma TV – que será provavelmente a Globo Filmes – e ela completa o orçamento. O Brasil está pronto e aí tem uma parte do orçamento que é Luxemburgo e eles estão captando. Já ganhamos um edital lá de desenvolvimento, estou indo agora no final do mês aproveitar a mesma equipe de animação do The Breadwinner, aquele filme produzido pela Angelina Jolie, da Cartoon Saloon – mesmo estúdio que fez Canção do Oceano e Uma Viagem ao Mundo das Fábulas. Eles terminaram o longa da Angelina e sobrou essa equipe lá para fazer testes, então estou indo passar dez dias em Luxemburgo dirigindo essa equipe afiadíssima para fazer os primeiros testes de animação dos dois personagens principais do meu filme. Estou apaixonado pelos dois, que são o Claé, que é o menino-lobo, chato, nerd, folgado, mimado, e o Bruô, que vem de um reino mais pobre, mais simples. Enquanto o Claé é filho único, todo tecnológico, sabe de tudo, o Bruô é um menino mais pé no chão, mais terra, mais doce, mais coração, um é Yin e o outro é Yang, um é mito e o outro é logos. Então eles se completam no final da história e se amam. E o filme é assim, é como esse amor sobrevive neste mundo que quer separar.
Seus protagonistas são sempre crianças. Já pensou em fazer alguma coisa com adultos?
Participei agora de um trabalho de núcleo criativo na Buriti Filmes em que a Laís Bodanzky foi a líder. Eu era um dos roteiristas e o projeto, que seria do meu quarto longa – a primeira versão do roteiro está quase pronta, fiz este ano –, é sobre quatro personagens, um filme-coral: uma criança (como o Menino de O Menino e o Mundo); um jovem; um cara mais quarentão, cinequentão; e um cara mais sessentão. São todos homens e principais, o filme foca em todos.
Está aí para o futuro, porque sempre é um processo lento, não?
Tenho quase certeza que esse filme não vai acontecer. Os filmes neste momento, neste pé, eles se transformam, a tendência é se transformar. Daqui a pouco me vem uma coisa, aí eu falo: ‘Caramba, aquele filme não era sobre isso. Só eu que não vi, era sobre aquilo’. Enquanto o filme é uma massa maleável ele precisa ser modificado, ele precisa se movimentar. Acho que é muito saudável essa dinâmica.
Você dedicou vários anos a O Menino e o Mundo, depois passou mais três exibindo-o por aí e disse que estava totalmente cansado dele, já tinha encerrado o ciclo e inclusive trabalhava no próximo filme, quando veio o Oscar. Comentam que a campanha para o Academy Awards é uma das coisas mais cansativas que existe, então gostaria de saber o que te esgotou mais: a maratona de cerca de um mês focado no Oscar ou esses anos todos falando de O Menino e o Mundo?
Tudo, porque o fato é que cheguei no Oscar já muito cansado. E aí aguentar a maratona do Oscar recém-saído dessa outra maratona é que foi o difícil. A vontade era ficar em casa, dormir, não viajar mais. Quando eu ficava uma semana em São Paulo era uma alegria, podia ficar na minha casa. Sempre tive uma coisa de romantizar amigos de bandas de rock que viajavam, achava legal uma vida meio riponga, mochila nas costas, conhecer um monte de gente, aventura... Cara, não aguentei dois meses disso. A primeira viagem que a gente fez do Menino durou dois meses e voltei para casa e falei: ‘Olha, não gostei’. Não queria mais aeroporto, avião. Queria ficar em casa e criar meu próximo filme, ficar pintando. E aí é como aquele ditado, 'quanto mais reza, mais aparece'. Quando essas propostas de viagens começaram a voltar eu falei ‘não’ para um monte: ‘Assim que voltar de Luxemburgo, os próximos seis meses vou ficar em casa!’. Foi pensar nisso e veio o e-mail: ‘Alê, convite para ir ao Japão’. E aí como é que falo ‘não’ para o Japão?
Falando em Japão, um leitor do site certa vez comentou em uma notícia que “a Filme de Papel é o Studio Ghibli brasileiro”. O que você acha disso?
Eu amo o estúdio Ghibli e vou contar uma coisa muito legal. Quando eu estava numa dessas viagens, no Marrocos, num festival de animação, um dos convidados era o [Isao] Takahata, que estava exibindo lá O Conto da Princesa Kaguya. Fui convidado para um jantar e quando vi estava na casa do diretor do festival com umas 10 pessoas, uma delas o Takahata. Não falo nada de japonês, então não fui falar com ele. Estava sentado no meu canto e de repente o vejo atravessar a sala e vir na minha direção todo delicado, ele e a mulher descalços. Ele vem com um livro e o intérprete dele fala comigo: ‘Alê, o Takahata disse que assistiu ao seu filme, que gostou muito, ficou muito impressionado e queria te dar este presente’. Ele me entregou um livro da arte do Princesa Kaguya! Nunca imaginei que fosse viver coisas assim. Não vou nem falar que eu desejei, porque era até fora de cogitação. Não tive a chance ainda de encontrar o próprio Miyazaki, mas quem sabe agora na viagem ao Japão?
E aprendeu alguma coisa em japonês para falar?
Não, só arigatō [obrigado]. Mas arigatō é uma boa palavra para falar para eles, viu? Acho que resume bem. Um monte de gente que tive a chance de encontrar nas festas do Oscar, antes do Oscar, nos festivais, em Annecy... Tenho muito a agradecer, sou muito agradecido por tudo. Às vezes tenho a sensação de que o filme não é meu, é um sentimento muito estranho. Penso: ‘Caramba, tudo isso acontecendo comigo? Não fiz nada...’. Bom, agradeço. Principalmente depois que passa tanto tempo, estou há quatro anos convivendo com o filme, ele já não é mais meu mesmo. Se um dia não foi, agora é menos ainda. Tudo o que falo parece uma fabulação, parece que estou inventando, de tanto que falei das coisas. Já não sei mais quase o que foi fazer esse filme.
E toparia embarcar de novo nesse negócio de campanha para prêmio, maratona de Oscar? Ficou o sonho, o desejo de ganhar?
Sou muito realista. Acho que ser indicado é infinitamente mais fácil do que ganhar, ganhar é quase impossível. Tanto que em toda a história o único filme que saiu fora da panela dos blockbusters foi o Miyazaki, que ganhou com A Viagem de Chihiro. Não tinha como não dar o prêmio para ele. Na altura do campeonato, quem era o Miyazaki, a história dele... Ele ganhou quase que pela carreira e, claro, com o filme coroando uma trajetória espetacular. Um filme daquele é um dos melhores da história da animação.
E você agora é membro da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas?
Sou! Votei este ano, me concentrei nos filmes de animação. Assisti a 27 longas de animação, votei e coincidentemente os que eu votei foram os que entraram, com exceção de um – Kubo e as Cordas Mágicas. Não gostei do Kubo e no lugar dele tinha posto aquele da Dinarmaca, Long Way North. Mas foi o único que não bateu, os outros quatro [indicados] foram os quatro que eu tinha votado. Votei também nos curtas, assisti a todos os curtas de documentário e de ficção.
E depois votou no vencedor?
Sim, posso votar em todas as categorias. Melhor animação votei em A Tartaruga Vermelha.
Você comentou na palestra aos alunos sobre a distribuição de O Menino e O Mundo na França [estreou em 90 salas, ampliou para 110 e fez 200 mil espectadores], bem melhor do que a no Brasil, e ultimamente muito se tem discutido lá sobre a questão da Netflix. O que você pensa do assunto, que dividiu até o Festival de Cannes?
Acho que esta é uma discussão extremamente comercial, essas opiniões são muito pautadas por interesses pouco cinematográficos. Acho que um filme é um filme, não preciso e não faço questão alguma de que meu filme seja lançado no cinema. Meu filme é um filme que carrega um espírito, um universo, personagens... É só um veículo que leva essas informações, esse DNA. Se ele vai ser exibido na tela de um celular, numa grande tela, ao ar livre, na televisão, numa piscina iluminada, onde for possível... Ok. É claro que no cinema tem todo um prazer, toda uma fruição que em outras mídias você não tem, mas não quero nem saber dessa briga. Para mim é filme e não importa. Só por que não estreou não é filme?