O 39º Festival Guarnicê de Cinema chegou a sua metade final na última quinta-feira (9) e a mostra competitiva contou com as sessões do longa-metragem Travessia e dos curtas Ameaçados, E o Galo Cantou, Ainda Não Lhe Fiz Uma Canção de Amor e Cláudio Costa.
Presente no elenco do filme principal e do curta E o Galo Cantou (que assistiu pela primeira vez na noite de ontem), o ator Chico Diaz foi a figura central do dia no Teatro da Cidade de São Luis.
"O Travessia me traz muita alegria, por ser um filme diferenciado do panorama atual, no sentido de que discute profundamente relações humanas, algo que está um pouco fora de moda", afirmou o ator que é conhecido do grande público por suas atuações em novelas da Rede Globo, mas também tem uma extensa carreira nos cinemas, com atuações em 50 produções.
Emocionado, João Gabriel, diretor do longa-metragem, recordou a gênese do projeto, que venceu o Festival Aruanda em 2015. "Esse filme é muito especial porque é um trabalho coletivo de criação entre eu e meu irmão, que faleceu ano passado. A gente passou muitos anos pensando e construindo esses personagens, essa história."
Gabriel também aproveitou a ocasião para tecer elogios à atuação de Diaz. "Chico foi o cara que veio dar vida a esse personagem, que é um personagem que atordoou nossas mentes", disse. "Quando a gente escreve, a gente pode ir para todos os lugares e o personagem se torna algo vivo dentro da gente que não está materializado ainda. Chico veio materializá-lo de maneira magnífica."
Ao se deparar com uma sessão com o muitas cadeiras desocupadas, possivelmente a mais esvaziada até aqui, Diaz lamentou. "Queria sugerir para a grande produção do festival [que fizesse] uma sensacionalização em torno do evento, porque não dá pra ver filmes tão bons com uma sala tão vazia."
Como já virou tradição na edição deste ano, as manifestações contra o presidente em exercício Michel Temer foram ainda mais constantes nos discursos. Em termos técnicos, o grande avanço de quinta-feira foi a melhora considerável dos equipamentos utilizados para amplificar o áudio dos filmes. Nos dias anteriores, um contínuo (e incômodo) som de estática prejudicava a apreciação dos trabalhos exibidos na tela.
Os curtas-metragens
O audaz documentário Ameaçados (RJ) abriu a noite com um retrato sobre violações de direitos humanos, coronelismo e as lacunas da Justiça no Brasil rural. O curta de Júlia Mariano é bastante convencional na direção, ficando em conformidade com uma reportagem para televisão. Entretanto, mesmo sem se aprofundar na linguagem cinematográfica, a obra funciona como uma denúncia relevante e corajosa sobre a vida de camponeses ameaçados de morte.
Num país onde a bancada ruralista tenta fazer a sociedade se curvar aos interesses do agronegócio e quer até alterar leis sobre trabalho escravo, é importante ver um filme que notifica os braços cruzados do poder, como no caso da cidade em que denúncias contra o banditismo de latifundiários não dão em nada porque o genro do fazendeiro é o defensor público.
O melhor filme do dia foi o curta goiano E o Galo Cantou, de Daniel Calil. Bem realizada, a obra aborda o conflito de intenções de um pai (Chico Diaz) e seu filho (Allan Jacinto). O pai projeta para o jovem uma vida austera de trabalho na lavoura, mas este deseja conhecer a cidade e deixar o leito da família para trás, como fez seu irmão, num gesto que deixou marcas de mágoa na família.
Tanto nas cenas em que o protagonista é sublinhado pela penumbra quanto nas cenas diurnas, a fotografia é um dos destaques. As imagens contemplativas que examinam o lento passar do tempo naquele cenário interiorano são bem construídas, um trunfo à parte. Algumas boas metáforas imagéticas, como o momento em que a blusa do protagonista fica presa no arame farpado, representando a ligação dele com aquele contexto, são bem pensadas.
E o Galo Cantou se mostra alinhado em alguns aspectos pontuais com outras produções do Festival Guarnicê 2016, como O Signo das Tetas e Para Minha Amada Morta, que ressaltam jornadas em que o não-dito tem tanto (ou mais) valor do que é dito através da linguagem verbal.
Na apresentação do curta, Chico Diaz elogiou a linguagem de Calil. "Ele tem um vocabulário, uma caligrafia cinematográfica muito interessante, muito rigorosa, e a direção de atores dele me impressionou bastante".
Construído na base de muitas referências, Ainda Não Lhe Fiz Uma Canção de Amor (RN) é dividido em três segmentos (Folk, Jazz e Blues) para narrar as fases de um romance entre um músico e um fotógrafo. A forma delicada como o relacionamento se dá é interessante, mas alguns artifícios estilísticos não acrescentam muito à trama. Os atores principais mostram uma química muito natural entre eles, embora as atuações façam os diálogos parecerem muito "escritos". A melhor coisa do trabalho é a escolha das canções de Luiz Gadelha.
Dirigido por Beto Matuck, o documentário Cláudio Costa (MA) se propõe a acompanhar o modus operandi do artista plástico maranhense que dá nome ao filme. Os momentos em que a câmera foca na rotina do ofício de Costa, visto aqui como um visceral artista em perpétua conexão com suas criações, são os mais proveitosos. As entrevistas em que pessoas ligadas ao artista tentam defini-lo são dispensáveis, pois prejudicam a relação do espectador com aquilo que ele mesmo observa na tela.
Travessia
Num quarto simples de um motel barato, um homem recém viúvo acaricia o corpo de uma prostituta como se tentasse encontrar ali a pele da esposa que faleceu há pouco tempo, deixando-lhe um vácuo afetivo. No outro lado da cida0de, o filho deste homem se envolve com o tráfico de drogas sintéticas, dança sozinho num transe vazio em uma casa noturna e planeja sair do Brasil. A solidão e a busca por algo que se perdeu são motes de Travessia, longa-metragem de estreia do diretor baiano João Gabriel (do curta Quando Nada Acontece).
Ambientado em bairros da classe média de Salvador (mas poderia se passar em qualquer capital brasileira, já que o retrato da cidade não se ampara em cartões postais mais conhecidos), o filme expõe um drama entre pai em filho, interpretados por Chico Diaz e Caio Castro. Logo na primeira cena do filme, o filho, Júlio, sai de casa num rompante. As ligações não atendidas indicam que os dois estão rompidos de forma aparentemente irreconciliável. Para piorar a situação entre eles, se estabelece um impasse relacionado à disputa de um imóvel deixado pela matriarca.
A decisão de convidar um ator do calibre de Chico Diaz para interpretar o taciturno Roberto foi bastante acertada. O ator consegue exprimir muito bem o desconsolo e a eventual animosidade que seu personagem exige, magnetizando o olhar do espectador ao ponto de fazer a atuação de alguns coadjuvantes que o cercam parecer menos relevante. Será que ele vai faturar o prêmio de melhor ator no Guarnicê?
Caio Castro mostra uma faceta diferente da que apresenta na teledramaturgia e tem uma atuação competente. O grande problema de seu personagem (e do filme) é que o caminho da narrativa de Júlio é tão menos interessante que o de Roberto que Travessia fica muito desequilibrado. O roteiro não constrói uma jornada cativante para o jovem envolvido no tráfico e até seu romance com a personagem de Camilla Camargo é sem graça.
É certo que é possível fazer um filme com a proposta de isolar os personagens principais em arcos opostos. Entretanto, fica a sensação de que Travessia perdeu uma grande chance de ganhar uma força adicional ao não colocar pai e filho no mesmo quadro quase nunca. Ver a interação entre Castro e Diaz poderia ter rendido bons momentos e ajudado o público a embarcar naquele drama familiar. Quando a trama enfim engrena, é tarde demais.
Em termos técnicos, destaca-se a capacidade de João Gabriel de conferir uma sensação de urgência e claustrofobia na cena em que Roberto dirige, desorientado, seu carro rumo a um evento que terá uma grande importância na trama. A fotografia de Pedro Sotero e a ótima trilha sonora guiada por pianos composta por Felipe Massumi (que parece evocar a influência de Philip Glass) ressaltam como pontos positivos.
Hoje no Festival Guarnicê
Nesta quinta-feira (9), a mostra competitiva apresenta o longa-metragem Ralé, dirigido por Helena Ignez e estrelado por Ney Matogrosso, Simone Spoladore e Djin Sganzerla, e os curtas Tem Alguém Feliz em Algum Lugar (RJ), Rapsódia Para O Homem Negro (MG), Quintal (MG) e O Assalto (MA).