O segundo dia de sessões da mostra competitiva do 39º Festival Guarnicê de Cinema foi marcado pela predominância de filmes que envolvem suspense e mistério e por discursos políticos contra o Presidente da República interino, Michel Temer.
Depois de passar por festivais da Europa e América do Norte e vencer o prêmio de melhor direção no Festival de Brasília, o suspense Para Minha Amada Morta foi apresentado no Festival Guarnicê na noite de quarta-feira (8), no Teatro da Cidade de São Luis.
O diretor do filme, Aly Muritiba, não compareceu à cerimônia, e o longa foi apresentado ao público pelo ator Fernando Alves Pinto, o protagonista, e pela atriz Mayana Neiva.
Fernando, que interpreta um homem viúvo que descobre que era traído por sua falecida esposa em Para Minha Amada Morta, afirmou que o filme "mostra a relatividade dos sentimentos, das vontades, dos desejos humanos".
Mayana Neiva, coadjuvante da trama, ministra na edição do Festival Guarnicê deste ano a oficina "A Construção da Personagem no Audiovisual". Ela aproveitou a ocasião para elogiar a iniciativa da organização do evento de reforçar a presença feminina nos workshops. "Esse festival tem várias oficinas, todas ministradas por mulheres. Fico muito feliz com essa força", disse.
Após a fala da atriz, Fernando Alves Pinto retornou ao microfone para protestar contra o governo interino que assumiu o Palácio do Planalto após o afastamento de Dilma Rousseff. "Antes, depois e durante: Fora, Temer!", bradou o ator. A palavra de ordem foi recebida com fortes aplausos. Até agora, todas os dias do Festival Guarnicê contaram com manifestações contra Michel Temer.
Curtas-metragens
Baseado em um conto de Lygia Fagundes Telles, o curta gaúcho Objetos analisa o valor dos simbolismos sob duas perspectivas diametralmente distintas, a de um nostálgico homem irrequieto com trejeitos infantis e sua desinteressada esposa, que indica não amar mais seu marido. A conversa entre os dois sobre a serventia das coisas que os cercam evidencia um gradual afastamento dos cônjuges, à beira do fim do amor. O trabalho é competente enquanto adaptação, o que não o impede de ser um pouco monótono.
Tarântula, produção paranaense dirigida em conjunto por Aly Muritiba e Marja Calafange, foi exibido em seguida e se notabilizou como um dos melhores (senão o melhor) curta do Guarnicê até aqui.
O enigmático trabalho apresenta um refino cinematográfico impressionante. A fotografia é exuberante. Os planos gerais formam quadros esteticamente instigantes. A mise-en-scène é um primor.
Na trama de suspense/quase-terror, acompanha-se uma família regida por uma mãe religiosa e sublinhada por medos, ausências e tensões pouco ditas, mas impossíveis de ignorar. O olhar do espectador é guiado pelo olhar da garotinha de perna amputada que move o enredo. Ela encara com aversão a ideia de usar uma prótese e desconfia do namorado da mãe, também amputado, visto como um intruso na vida dela e de sua irmã mais velha.
O antigo casarão onde vive a família é um cenário com ares de southern gothic, uma casa que engloba portas, janelas e pessoas desgastadas e tem no ranger de suas madeiras um lamento quase autônomo. Os múltiplos crucifxos nas paredes, as bonecas sem perna e o Pai Nosso balbuciado pela mãe ajudam a compor um cenário que beira o macabro.
Não é exagero dizer que Tarântula encontra pares em aspectos do cinema de diretores afeitos a histórias sobre culpas e incômodos, como Michael Haneke. A construção da tensão que leva ao desfecho do curta cumpre muito bem a proposta de atingir um nível táctil de desconforto.
O curta fluminense Encontro dos Rios carrega semelhanças pontuais com Tarântula, mas é menos inspirado que o filme anterior. Com uma fotografia de cores frias e dessaturadas, a história acompanha uma menina que diz ter visto um corpo boiando num rio, para a descrença inicial dos adultos. O foco naquilo que não é visto surge com a intenção de atiçar uma apreensão na narrativa, mas são tão poucas as pistas sobre o horror que o curta sugere que fica difícil se conectar com a obra.
A animação Joca e a Estrela é o único curta com esse formato no Festival Guarnicê deste ano. A fábula pueril sobre um menino que faz amizade com uma estrela cadente chamada Aparecida trata de forma bem didática de temas como autoestima e superação. Construídos com traços simples, o curta inevitavelmente soa mais apropriado na programação de um canal infantil educativo do que num festival de cinema de arte em que o público é formado por adultos. A escalação de Joca e a Estrela serve mais para evidenciar o caráter de valorização da produção local que guia a visão do festival maranhense.
Para Minha Amada Morta
Os estágios do luto representam uma jornada incômoda pela qual a maior parte das pessoas irá passar em algum momento de sua vida. A tristeza de se deparar com a partida de quem se ama é, por si só, um momento de dificuldade ímpar. Ainda assim, o pesar pode atingir dimensões inesperadas quando a lembrança de quem se foi é maculada por descobertas desagradáveis. É nesse mote que Para Minha Amada Morta apresenta seu enredo.
O diretor Aly Muritiba escalou Fernando Dias Pinto para o papel principal, um fotógrafo forense da Polícia Civil que tem o mesmo nome do ator. De primeira, somos apresentados ao personagem quando ele está envolto por objetos de sua amada morta. O viúvo venera sapatos, roupas e outros pertences de sua esposa falecida como um devoto que tem profundo zelo por suas relíquias religiosas.
Na casa de Fernando, Muritiba filma planos que são repletos de utensílios que servem como pistas sobre detalhes da trama que jamais são revelados de forma direta. Não é dito nunca quais foram as circunstâncias que levaram a mulher ao óbito, mas uma maca hospitalar localizada na residência da família indica que ela partiu há pouco tempo.
Ao lado do filho — para quem olha com um carinho natural, mas também com um leve desinteresse causado pela dor da perda da esposa —, Fernando vasculha cenas do passado de sua mulher em fitas do acervo pessoal da família. Nos vídeos, descobrimos que a mulher já foi bailarina. A estética borrada de baixa resolução das fitas VHS contribui para uma projeção etérea que Fernando faz de sua esposa. Até que uma daquelas fitas revela uma traição que o homem nunca tinha conhecido até então.
Vidrado na tela, como as crianças de Poltergeist - O Fenômeno, Fernando se flagela ao ver a sextape de sua mulher (Michelle Pucci). Nua e com a câmera em mãos, ela se exibe para seu amante em um precário quarto, que contrasta com sua agradável casa de classe média. Muritba filma as feições de prazer da mulher em um plano detalhe icônico, mostrando o reflexo da televisão na íris de Fernando. Mais do que a interação sexual explícita, o que choca o marido traído é ouvir sua esposa chamar o outro de "melhor coisa que aconteceu na minha vida".
Graças às suas habilidades no trabalho com a polícia, Fernando começa uma investigação particular para descobrir quem era o homem que dormia com sua esposa. Depois de unir pistas, ele descobre que o homem em questão é o trabalhador autônomo Salvador (Lourinelson Vladimir), um pai de família evangélico que leva uma vida simples. A partir daí, Fernando se despede do filho e se embrenha, obstinado, na missão de se infiltrar na família de Salvador, passando a ir na igreja que eles frequentam e alugando uma casa no mesmo quintal de seu rival, passando-se por um crente convertido.
A atuação de Fernando Alves Pinto é convincente e condiz com a tortuosidade psicológica de seu personagem. Seu rosto não mostra feições extremadas, mas seu olhar soturno e seu modo lento e grave de falar vão revelando convulsões internas. A fotografia do filme sublinha diversas vezes o perfil do rosto de Fernando, como se evidenciasse a todo momento que aquele personagem, com pulsões represadas de violência, esconde uma faceta sombria e desconhecida.
Em determinados momentos, é possível se compadecer dele. Afinal, quem seria capaz de lidar com facilidade com a descoberta póstuma de uma traição conjugal? Em outros momentos, Fernando é extremamente ameaçador. Algumas dinâmicas entre o personagem com a filha de Salvador (Giuly Biancato, em ótima atuação) lembram a forma de agir do insano psicopata voyeur que Robert De Niro encarna em Cabo do Medo, de Martin Scorsese.
Ainda no campo das atuações, vale destacar que Lourinelson confere humanidade a um personagem que felizmente não é vilanizado. Ele representa a virilidade que falta ao protagonista. Só é uma pena ver que a interessante personagem da mãe evangélica vivida com o domínio de nuances sutis por Mayana Neiva não tenha tido mais espaço.
Em Para Minha Amada Morta o suspense assume uma proporção pouco habitual. A influência do cinema de imagens implacáveis de Michael Haneke é sentida na ausência quase total de trilha sonora. Assim, Muritiba constrói as tensões através de construções poderosas, como plano sequência que mostra Salvador e Fernando em cima do telhado.
O impulso de Fernando de se vingar de forma violenta é filmado de forma paciente, o que amplifica algumas tensões pontuadas pela forma com a qual o homem segura objetos que podem ser usados como armas.
Apesar de todos os méritos, o filme deixa a sensação de que poderia ser mais curto e ter um ritmo um pouco mais envolvente. A duração de quase duas horas atenua a força da obra. Rumo ao desfecho do filme, Muritiba escolhe frustrar algumas expectativas do público, o que reforça a personalidade do cineasta, mas pode também desapontar alguns espectadores. Um clímax impactante como o do excelente O Lobo Atrás da Porta teria caído bem em Para Minha Amada Morta.
Hoje no Guarnicê
Nesta quinta-feira (9), a mostra competitiva apresenta o longa-metragem Travessia, dirigido por João Gabriel e estrelado por Chico Diaz e Caio Castro, e os curtas Ameaçados (RJ/PA), E o Galo Cantou (GO), Ainda Não Lhe Fiz Uma Canção de Amor (RN) e Cláudio Costa (MA).