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Desde o início da 19ª Mostra de Tiradentes, um dos projetos mais aguardados era Animal Político, primeiro longa-metragem do cineasta Tião. O projeto despertava curiosidade tanto pela bela carreira do diretor com curtas-metragens, quanto pela premissa inusitada de uma vaca que experimenta uma sensação de vazio e faz uma jornada em busca de autoconhecimento. Leia a nossa crítica.
O resultado em tela gerou risos e espanto. Como se coloca uma vaca dentro de um shopping center, ou no salão do cabeleireiro? Como se constrói a personalidade de uma vaca, e de que maneira ela pode sofrer uma transformação? Tião explicou as várias facetas do filme que "vai da Sessão da Tarde a Dostoievski e Nietzsche":
Na saída da sessão, muitos espectadores se perguntavam como teria sido a experiência de filmar com a vaca na cidade.
Tião: Quando a gente pedia autorização para filmar, metade das pessoas dizia “Vocês estão doidos?” e mandava a gente embora. Outros achavam incrível, e convidavam familiares para participar, tanto em restaurante quanto lojas. A história despertava interesse. Como tem muitas cenas na rua, pedimos apoio à CTTU. Uma hora, o projeto já era conhecido na cidade, e os guardas diziam “Estava ansioso para ver, porque um colega deu apoio ontem e disse que era o filme da vaca... Então eu pedi para vir.” O mesmo ocorreu com os figurantes. Sempre foi um elemento de curiosidade.
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Lidar com o animal foi a maior dificuldade de produção?
Tião: O filme inteiro é muito difícil. A questão da vaca envolve vários níveis: a produção precisava pegá-la muito cedo, arrumar o transporte adequado, ter a autorização dos veterinários para transitar com ela. A gente só podia filmar com a vaca dois dias seguidos, senão ela ficava cansada. Cada filme é um universo diferente, é preciso entender a dinâmica deste universo. Nós também não podíamos programar muitas cenas por dia. Eram no máximo duas locações, e nossa decupagem tinha em média dois planos por locação. Num dia bom, a gente conseguia quatro planos.
Às vezes a gente queria que ela ficasse parada, ou caminhasse de um ponto ao outro, e isso poderia demorar horas. Então a gente tinha uma porção de material bruto sem importância, até aparecer uma joia. Do nada, ela fazia exatamente o que a gente queria, e dava certo. Às vezes a gente pensava que a cena seria muito demorada, e ela fazia exatamente o que a gente queria logo de cara. A gente quase duvidou: será que ela tem uma consciência? De vez em quando a equipe ainda estava preparando a cena, mas ela estava na posição certa, esperando. Fazia silêncio, ela percebia a mudança de clima e começava a agir.
Como construíram a personalidade de uma vaca com conflitos existenciais? Por que a voz da fêmea é narrada por um homem?
Tião: Foi bem natural, pela presença dela em situações comuns. A simples presença da vaca faz com que você tenha um distanciamento em relação a situações que seriam banais com humanos. A questão da voz masculina também foi natural, porque a gente não queria direcionar o filme para algo específico, fazendo dela uma mulher, ou um boi com voz de homem. Preferia criar a sensação de humanidade sem restrições, tentando de alguma forma agregar todas as características.
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Uma das tentativas de transformação da vaca é através dos livros e da cultura, mas isso não a satisfaz.
Tião: Essa ideia estava presente desde o começo do roteiro, é o primeiro passo que ela toma depois de cortar os hábitos do dia a dia. Ela faz experiências aleatórias, mesmo experiências psicodélicas em shows. Mas a cultura é uma questão inicial: é comum as pessoas quererem melhorar, eu mesmo acho que leio pouco, gostaria de ler mais. Isso é universal. Existe um processo de exaustão: ela precisava acumular muitas tentativas para depois sentir um cansaço.
Animal Político é um filme sobre a alienação?
Tião: Também. A gente tentou colocar um personagem médio, numa família média e um ambiente médio, com uma crítica ao estilo de vida e à visão social. Ao mesmo tempo, era algo sutil, porque nós somos conduzidos pelo personagem. Para a gente, parecia interessante colocar esta vaca, com estes pensamentos, em situações como o encontro com o robô que fala sobre existencialismo aleatório. Dava curiosidade, e vontade de se deparar com essas pessoas. Tinha vontade de pegar um tipo comum, e colocá-lo num filme de Sganzerla, para ver o resultado. De certo modo, um aspecto positivo é a tentativa de vaca de lidar com essa situação, isso é condizente com a personalidade dela.
Pode-se considerar esta história uma fábula?
Tião: O filme não fica preso a essa ideia, mas ele utiliza esta bagagem. Assim como a própria vaca, ele utiliza o classicismo e a presença das fábulas, mas para mim nunca é interessante ficar preso a uma plataforma. Algo que me agrada no filme é o fato de varrer um espectro interessante de coisas, começando de uma forma e terminando de modo bem diferente. Ele vai de Sessão da Tarde a Dostoievski e Nietzsche. Agora que o filme está pronto, estou mais interessado em escutar opiniões. Depois de ficar cinco anos trabalhando nessas ideias e nessas imagens, quero ver como isso passa para alguém que apenas leu a sinopse.
A fábula toca na história do cinema, na construção da sociedade, por via de exploração, de colonização. Mas nós trabalhamos o classicismo na concepção de Aristóteles, e também da Odisseia, com a noção de partir e voltar, se deparando com coisas parecidas, mas transformadas. Essas também são as experiências de montagem do Kuleshov, que colocava uma mesma ideia de maneiras diferentes: os elementos são parecidos, mas por causa da trajetória da personagem, estes elementos agora se comportam de outra forma.
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As pessoas riram bastante na sala de cinema. Esta era uma reação prevista?
Tião: É difícil ter expectativas quanto ao humor, porque eu passei anos me acostumando às ideias do filme, e também ao humor dele. Pelo absurdo, ele tem um humor sutil, e as pessoas se relacionaram bem. Mas eu não tinha expectativas, fiquei apenas curioso para ver como seria. Vendo o filme pronto, achei interessante a dinâmica da voz com as imagens, dentro da construção do humor. Essa era um questão importante, sobre o tom do filme e o tom da voz. Às vezes é um humor que bate de frente, logo com o corte da montagem, às vezes ele vem devagar, como a vaca.
Como se distribui um projeto tão inusitado quanto este? Ele já tem lançamento garantido nos cinemas?
Tião: Animal Político vai para o festival de Roterdã agora. Eu estava trabalhando muito na finalização, então este processo que vai acontecer daqui a seis meses ainda não está tão claro. Primeiro, precisamos ver como as pessoas se relacionam, para depois pensar na questão da sala de cinema. Quando a gente estava filmando, percebi que nem todas as pessoas têm o mesmo contato de cinema que nós temos. Os guardas de trânsito e as pessoas que cuidavam da vaca diziam que queriam muito ver o filme. Por um lado tem a leveza, a curiosidade, o humor, mas por outro, ele é denso, pouco palpável. Ele percorre muitos lugares, e agora preciso observar e aceitar o que acontece com ele.