Enquanto o homem costura, a mulher dirige; quando o rapaz passa roupa, ela conserta o caminhão; o macho alisa o próprio cabelo, mas ela se orgulha das madeixas pixaim. Tudo isso num agreste em pleno desenvolvimento econômico. Bagunçando as noções de gênero e golpeando o clichê do nordeste miserável, o diretor Gabriel Mascaro (Ventos de Agosto) acaba de colocar nos cinemas, nessa quinta, 14, seu mais recente filme, Boi Neon.
Laureado em Veneza (com o prêmio especial do júri para o diretor), Toronto (com menção honrosa na primeira mostra competitiva do festival, onde o AdoroCinema pode conferir a produção) e no Festival do Rio (filme, roteiro, fotografia e atriz coadjuvante para Alyne Santana), o longa é protagonizado por Juliano Cazarré.
Ele vive um assistente das apresentações da vaquejada, que percorre o Nordeste ao lado de Galega (Maeve Jinkings) e da filha dela, a menina Geise (Alyne), mas que quer mesmo é ser estilista (?!) do Pólo de Confecções do Agreste. Por onde passou, o filme também levantou poeira por conta das cenas de nudez (masculinas) e sexo (com uma grávida).
O AdoroCinema conversou por telefone com o ator sobre esses e outros assuntos: “O fundamental, para o Gabriel e para mim, é contar essa história doida, contar essa história torta, questionadora. E as pessoas vão ter que dormir com esse barulho. Lida com isso! Se tiver achando ruim, levanta e sai”. Confira.
AdoroCinema: Como você chegou no sotaque e nas expressões idiomáticas, que são tão ricas para a linguagem do filme?
Juliano Cazarré: O corpo estranho ali sou eu, porque a menina [Alyne Santana] mora lá [em Santa Cruz do Capibaribe, Pernambuco, que serviu como locação], os vaqueiros são de lá, e a Maeve mora em Pernambuco. O único de fora era eu, que sou gaúcho, criado em Brasília. Eu fiquei ouvindo eles o tempo inteiro, durante o processo de ensaio, nas duas semanas e meia antes de rodar. Passava o dia inteiro falando daquele jeito, errando, sendo corrigido, anotando expressões curiosas que eu ouvia e, de vez em quando, eu trazia alguma gíria de algum lugar que eu já tinha ouvido.
Há muitas cenas de nudez, masculinas, inclusive. Não é a sua primeira vez, mas dessa vez elas fizeram muito barulho. Como lida com esse tipo de cena?
As cenas se inserem de uma maneira muito adequada no contexto do filme. O Gabriel tem uma maneira de filmar, junto com o Diego [Garcia], diretor de fotografia, em que tudo é feito sempre com beleza e bom gosto. As cenas são fortes, de nudez e sexo, mas eles não botam uma lente de aumento, não fazem um close do pau, da vagina. E as cenas ajudam a contar o filme.
Mesmo assim, são cenas muito realistas. Quando entrevistamos o Gabriel Mascaro em Toronto, perguntamos se a cena de sexo com a grávida tinha sido “real”, e ele disse que teríamos que perguntar aos atores, então...
O Gabriel é malandro, fica tentando jogar a responsabilidade para mim. Ele queria que eu desse respostas misteriosas, que eu deixasse as pessoas sem saberem se rolou ou não. Mas eu não acho legal. Eu avisei para ele que tenho os meus limites. Eu não sou um ator pornô. Eu não vou penetrar ninguém, nem ser penetrado. A gente vai fazer a cena, com o máximo de realidade possível, vai esconder o que der, e vai parecer que foi [real]. Mas é cinema. Então, não foi. No começo tem uma ereção, que não foi fácil, mas o que importa é que a cena é lindamente filmada. Tenho o maior orgulho dessa, que é uma cena de empoderamento feminino.
Em tempos em que a sociedade tem se revelado cada vez mais conservadora, até mesmo por uma representatividade política nessa linha, a nudez e o sexo não afastariam o público?
O Gabriel não está preocupado, como o cara da comédia, em fazer um milhão [de espectadores]. É claro que o ele gostaria de fazer um milhão. Mas o fundamental, para o Gabriel e para mim, é contar essa história doida, contar essa história torta, questionadora. E as pessoas vão ter que dormir com esse barulho. Lida com isso! Se tiver achando ruim, levanta e sai. Fazer o quê? As pessoas levantaram e saíram no filme do Wagner [Moura, Praia do Futuro], e eu achei tranquilo. Levantavam no cinema porque o "Capitão Nascimento" estava beijando a boca de um outro homem... não dá para gente pensar só com a cabeça de público, porque aí a linguagem não avança, a discussão não avança, então, a arte tem que seguir na frente, para levar a sociedade.
A política brasileira deu vários passos para trás. Os políticos nunca dão o tom da mudança, ela vem a reboque. Eles são conservadores, caretas. A gente vê aí o [presidente da Câmara dos Deputados] Eduardo Cunha com um posicionamento retrógrado, machista. Foi aprovada uma lei transformando o assédio moral em crime e um deputado propôs que essa lei também pudesse ser estendida a mulheres transexuais e não passou, porque as deputadas mulheres votaram contra.
Aliás, como o Boi Neon se posiciona nesse cenário de domínio das comédias nas bilheterias nacionais?
Eu não tenho nada contra as comédias, elas têm mais é que fazer público e servem para as pessoas se divertirem. Mas a gente precisa cavar mais espaço para esse nosso cinema mais autoral. Que Horas Ela Volta?, da [Anna] Muylaert, Casa Grande, Boi Neon, são filmes que começam a trazer uma proposta nova. O Boi Neon, por exemplo, apesar de trazer esse pano de fundo rural, mostra um agreste em desenvolvimento, o Nordeste se industrializando.
E tem a questão da confusão de gêneros...
O questionamento de estereótipos masculinos e femininos e estereótipos do nordestino é o que o filme traz de mais contemporâneo. Ele não apresenta aquele nordestino que bate na mulher, vai trabalhar com o gado, volta, enche a cara de cachaça. Apresenta novas possibilidades, porque é isso que está acontecendo no mundo. A questão de gênero está na ordem do dia, a gente vê pessoas transgênero lutando por mais lugar, por mais espaço.
A respeito das premiações, todo mundo esperava que o Que Horas Ela Volta? fosse indicado ao Oscar. E não aconteceu. Boi Neon acumula críticas internacionais positivas. Isso gera uma expectativa?
Eu acho bom o Boi Neon estrear primeiro lá fora, com críticas positivas porque, de repente, quando chegar aqui, chega com um ambiente mais favorável. Eu tenho a impressão de que se esse filme fosse lançado primeiro aqui, se dois ou três críticos importantes torcessem o nariz, estava acabada a carreira do filme. Mas eu não penso muito nisso [nas premiações], até porque não dá para entender cabeça de júri.